O Consumo e a Poupança

 

Artur Soares Alves

4-Out-2012

 

 

 

Esta semana foi anunciado um pacote fiscal que promete arruinar o que resta da economia. E neste pacote fiscal os proprietários são mais uma vez duramente atingidos. Dada a sua atualidade parecerá que deveria ser esse o assunto deste artigo. Porém, não deixa de ser importante ir aos factos que nos trouxeram até aqui, às causas últimas do empobrecimento do País.

 

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No drama do congelamento das rendas há uma circunstância estranha e que parece ser de uma incoerência insustentável. A questão expõe-se em dois passos:

 

§  O proprietário poupou para poder adquirir o prédio. Pensava tirar um rendimento que lhe iria assegurar uma velhice digna sem depender de ninguém. Diríamos que se trata de uma atitude virtuosa, uma atitude que contribui para o bem-estar coletivo.

§  Porém, ao retirar-lhe o usufruto da sua poupança o Estado pune o proprietário, isto é, castiga esta atitude virtuosa.

 

De facto, se olharmos apenas sob o ângulo do senso comum toda a questão do congelamento é incompreensível. Para compreendermos como o pode o Estado punir a poupança temos que entender que o Estado moderno, isto é, a classe política, não considera a poupança como uma virtude mas sim como um vício do qual se procura dissuadir o cidadão.

 

E ao mesmo tempo compreenderemos como viemos aqui parar, isto é, como se criou uma dívida pública brutal e seguramente impossível de pagar.

 

O “vício” de poupar

 

Comecemos com um raciocínio elementar. Um quidam ganhou 100 euros e tem duas opções, consumir ou poupar. Como olha o Estado para essas duas atitudes?

 

Se comprar um objeto que custe 100 euros, o Estado ganha 19 euros nessa transação na forma de IVA (a 23%). O preço sem IVA é 81 euros.

 

Mas se colocar o dinheiro num depósito à ordem, o Estado não ganha nada, em princípio. Na realidade, devido à existência da inflação, o Estado arrecada uma percentagem dos 100 euros, mas nunca mais do que 3,5 euros. A inflação é um imposto silencioso, coisa de que os povos medievais não duvidavam[1].

 

Assim, para minimizar o seu prejuízo o cidadão coloca o dinheiro num depósito a prazo e aqui também ocorre uma situação caricata, sob a forma de imposto sobre o rendimento do capital que hoje corre à taxa de 25%. Suponhamos que o banco remunera o depósito à taxa de 4% e que a taxa de inflação se situa em 3%. O lucro líquido do depositante foi um euro e supostamente aí deveria incidir o imposto de capitais. Porém, o imposto incide sobre os 4 euros, quer dizer que o euro de lucro é absorvido pelo Estado.

 

Se a taxa de juro for de 4% e a inflação for também igual a 4%, então, o depositante paga imposto sobre lucro que não teve. No fim do ano, devido ao imposto, tem uma rendibilidade negativa. Podemos ver outros casos que nos levam sempre à mesma conclusão, a poupança traduz-se num prejuízo.

 

Para evitar este prejuízo o cidadão deverá consumir o que ganhou. Só assim protege o seu dinheiro e proporciona ao Estado a oportunidade de receitas fiscais elevadas. Vista deste modo a poupança é um vício económico.

 

O IVA

 

A mercadoria comprada por 100 euros muito provavelmente desembarcou em Lisboa num contentor, vinda da Malásia ou da China, e custou 40 euros. Para além das taxas alfandegárias, o importador pagou logo 9,2 euros de IVA. A partir daí, pelo transporte e distribuição o seu valor foi sendo “acrescentado” e o respetivo imposto pago, até chegar ao consumidor final, totalizando 19 euros a favor do Estado.

 

Com este dinheiro o Estado vai pagar salários ou promover gastos públicos que geram novas receitas para os cidadãos que, por sua vez voltam a consumir e a pagar IVA. Se os cidadãos pouparem o Estado perde receitas e deixa de poder efetuar as suas benemerências, o dinheiro move-se mais devagar, todos ficamos mais “pobres”. O Estado português atual promove esta circulação monetária que — aparentemente — é prejudicada pela poupança.  

 

Esta circulação monetária também se verificou noutro setor que muito ajudou a arruinar o País, o imobiliário. A aplicação do princípio de poupança teria levado ao aproveitamento do parque imobiliário construído, fazendo as adaptações possíveis para melhorar a funcionalidade e o conforto. Porém, vejamos que impostos aparecem nas obras novas: a licença de construção, o IVA sobre todos os materiais, o IVA sobre os serviços e as obras subcontratadas. No último ato de comercialização é pago o IMT.

 

Se as obras fossem essencialmente de restauro e adaptação não gerariam tantos impostos. Do ponto de vista fiscal a construção nova traz muito mais proventos ao Estado do que a transformação da construção antiga, como o exemplo apresentado aquiA poupança não alimenta os cofres do Estado, o consumo é o verdadeiro sinal de “virtude”.

 

Todavia, não são somente os impostos gerados que valorizam o consumo aos olhos do Estado. O próprio ato de consumir dá uma ilusão de prosperidade que cria nos cidadãos uma atitude otimista e grata para quem governa. Como por magia desaparecerem os homens de fato-macaco de ganga e só se vê gente bem vestida e montras ricamente decoradas.

 

O problema

 

Na economia há o que se vê e o que não se vê[2]. Neste caso, o que vê são as ruas comerciais ou, melhor ainda, os shoppings. O que se não vê são os locais onde os bens de consumo são fabricados, com muita frequência em países estrangeiros. O que se vê é a generosidade do Estado que lança dinheiro na economia e cria empregos, algumas vezes puramente nominais. O que não se vê é a fiscalidade atuando como o caruncho que rói as traves de madeira. O que se vê é o brilho do consumo, o que não se vê é a ausência de aplicações produtivas da poupança.

 

Com o tempo também há o que não se via e agora se vê. O que se via eram as pensões de reforma muito acima da totalidade descontos ao longo do tempo de trabalho e que financiaram uma classe de cidadãos dispostos a gozar a vida. O que se vê hoje são os cortes nas reformas e a fraca perspetiva de as novas gerações poderem gozar de tais benesses.

 

Assim, o Estado arrecada receitas basicamente devido ao comércio de bens importados, até mesmo na construção civil. A dificuldade de investimento, a burocracia e a legislação travaram a iniciativa dos Portugueses com espírito empreendedor. Como o País é uma unidade económica, a importação de bens somente pode conseguir-se por duas vias: (1) pela produção de bens para troca; (2) pelo endividamento externo. No caso português adotou-se a via número dois e o resultado é a situação presente, uma dívida externa gigantesca e um País paralisado, entregue às idiossincrasias dos economistas da chamada “Troika”. Eis o resultado da falta de poupança, complementada pelo crédito criado nos computadores dos bancos centrais e destinado a dar a ilusão de prosperidade.

 

Quem poupa

 

Um cidadão que vai de metro para o emprego, em vez do automóvel, realiza um ato de poupança; os indivíduos e as famílias poupam. Uma empresa que opta por uma mesa em folheado para a sala de reuniões, em vez da mesa maciça em carvalho, também realiza um ato de poupança. O Estado distingue-se mais pela não-poupança — pelo uso ineficiente dos recursos, pelo favorecimento de certos grupos (os free-riders), pelos gastos sumptuários.

 

Porém, a poupança ou a não-poupança acabam sempre por cair sobre os indivíduos e as famílias. A poupança na empresa significa mais recursos destinados à produção e ao investimento, com vantagem para os donos da empresa, os empregados e os clientes. A não-poupança do Estado traduz-se em impostos cada vez mais elevados.

 

A poupança não é uma mera questão de gosto ou de mania. O dinheiro poupado vai entrar no circuito financeiro e ser emprestado às empresas e aos particulares para estes levarem por diante projetos produtivos. As poupanças sustentam o crédito que permite adquirir bens de capital (por exemplo máquinas) que tornam o trabalho mais eficiente e produtivo, e mais bem pago.

 

Isto dito de um ponto de vista social. Do ponto de vista individual a poupança é ainda mais importante, pois é o facto que permite às famílias suportarem com dignidade os momentos maus da vida, como o desemprego. Quando nós vemos o genuíno desespero de quem perdeu o emprego temos ali com toda a clareza o resultado da falta de poupança.

 

A falta da poupança

 

Já vimos que o Estado não é prudente nos recursos que administra e que incita materialmente o cidadão a ser perdulário.

 

Voltando à questão habitacional, a prudência manda aproveitar as casas que estão disponíveis adaptando-as às condições da vida moderna. A mesma prudência manda que se proporcione às pessoas a oportunidade de viver o mais próximo possível do emprego. Porém, o que o Estado fez foi desperdiçar os prédios edificados e promover a construção nova para a venda a crédito, que se tornou rapidamente num processo especulativo.

 

Dito isto, donde nasce este crédito maciço? Obviamente que não provém da poupança mas sim das operações dos bancos centrais, somente isso permitiu uma taxa de juro ridiculamente baixa que ilude o comprador acerca do preço real e do valor real do prédio.

 

Chegou o momento em que este processo teve que parar e iniciar o refluxo mas as dívidas permanecem. As consequências financeiras — e morais! — das opções anteriores começam agora a surgir. Por ora sobem-se os impostos mas da pedra seca não se extrai sangue como o País em breve vai aprender.  

 

FIM

  

 



[1] Vd. História de Portugal de J. Mattoso, vol. II, página 140.

[2] Esta ideia-síntese é devida ao economista francês Frédéric Bastiat (1801 - 1850) e é descrita com o paradoxo da montra partida. Um rufia atira uma pedra à montra de um padeiro e quebra-a. Em resultado disto o padeiro chama o vidraceiro para reparar o estrago e com isso desencadeia-se um processo económico. Começa com o lucro do vidraceiro, depois vem o fabricante do vidro, os operários, o fornecedor do combustível para o forno, os mineiros que extraem a sílica, etc. Afinal um ato de vandalismo foi positivo para a economia. Sem a montra partida o dinheiro teria ficado adormecido e sem uso.

Isto o que se vê. E o que não se vê? Ainda assim admitamos que o padeiro tem de facto o dinheiro para comprar o vidro novo. Mas ele não tem o dinheiro guardado sem destino. Possivelmente quereria comprar um fato novo e o alfaiate perdeu uma oportunidade de fazer negócio. Possivelmente quereria investir numa máquina que melhorasse a qualidade do pão e lá ficam prejudicados os clientes. O mais certo vai ser preciso trabalhar em excesso durante algumas semanas para poder compensar o prejuízo.

O argumento da produtividade criada pela guerra pertence à mesmíssima família. É verdade que cada soldado é menos um desempregado, é verdade que as fábricas de armamento trabalham a pleno gás e geram emprego. Contudo, é essencialmente verdade que as pessoas estão dispostas a fazer sacrifícios, entre eles a trabalhar em excesso, para vencer a guerra. Afinal a “vantagem” da guerra provém em transformar o cidadão num escravo voluntário.

montra partida tem outras variantes: obras públicas sumptuárias, cortejos de carnaval, e muitas outras coisas que fazem “girar o dinheiro”, dizem eles…

 

  
 
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