Nova Cidade Velha

 

Miguel Ângelo Silva [i]

12-jun-2014

 

 

Em quarenta anos apenas, todas as cidades antigas de Portugal foram cercadas por manchas de construção desordenadamente suburbanas cuja escala massificada atingiu dimensões pornográficas. Para além do desastre urbano, começam a fazer-se sentir as perversas repercussões sociais desses mares de betão, como uma brutal onda de choque. Entretanto, o investimento na expansão da cidade para estes anéis peri-urbanos obrigou à criação de vias de acesso biunívocas que penteiam o território sedimentado qual rasto de tufão e correspondente mancha de território queimado[ii].

 

Desamparo urbano

 

Ao contrário do que se poderia imaginar um dos móbeis que causa maiores estragos no processo de reabilitação arquitetónica da cidade está relacionado com esta atuação urbanística à escala dos grandes planos de vista aérea. O tecido antigo sofre pressões próprias pela fragilidade própria de quem está abandonado ao seu destino, já que os seus habitantes fugiram na procura de melhores condições que a cidade velha, por ausência de manutenção ou atualização, já não pode oferecer. Os números espelham este esvaziamento dos cascos antigos e a insuflação das áreas metropolitanas de Lisboa e Porto[iii]:

 

1960

Lisboa - cidade

891.000

habitantes

2011

Lisboa - cidade

548.000

 

1960

Área Metropolitana de Lisboa

1.524.000

 

2011

Área Metropolitana de Lisboa

2.821.000

 

1960

Porto - cidade

303.000

 

2011

Porto - cidade

238.000

 

1960

Área Metropolitana do Porto

723.000

 

2011

Área Metropolitana do Porto

1.287.000

 

 

Em Portugal, a ideia de reciclar a cidade antiga esteve até há pouco tempo bastante arredada da agenda dos promotores/ decisores. Os números mostram cruelmente a realidade dum sector de construção em que, de acordo com a AECOPS e INE, o total de investimento na recuperação representa cerca de 5 a 7%, contra uns54,8% que fazem a média europeia.

 

Talvez com os cerca de meio milhão de habitações vazias cadastradas em Portugal e o brutal aumento das taxas de juro, se inverta esta tendência, repensando-se no tecido histórico como uma oportunidade primordial e visivelmente contemporânea. Prevê-se que, no final da próxima década, Lisboa esteja colocada no grupo das cinco áreas metropolitanas mais populosas da Europa. Sabendo-se que esta previsão para o crescimento das grandes cidades se desenvolve exponencialmente, então este é o momento para se parar e se tomar consciência plena das oportunidades do retorno à cidade, com um novo olhar para o tecido construído existente.

 

A Nova Economia está já em formação e encontra no produto resultante dos ciclos especulativos de que se acaba de sair a sua principal fonte de estudo: aquecimento global, exploração desmedida dos recursos naturais, desordenamento do território, desemprego galopante, falsos níveis da qualidade de vida sustentada no consumo trocando o ser pelo ter, etc.. O futuro da sobrevivência nas e das cidades, depende de ações criativas que emparelhem fortemente com o sentido poético, estético e funcional do tecido construído abandonado, quando este esteja capaz de novas funções.

 

Esta não é uma questão nova. As anteriores crises que se abateram sobre a sociedade ocidental desde o frenético período do pós-guerra levantaram já novos problemas relacionando mudança de atitudes com a herança de um recetáculo físico. «Como puede conseguirse esta profunda transición social sin perder todo el carácter y el capital útil del pasado? Como hacer que el entorno sea flexible y receptivo, cualidades esenciales en una sociedad experimental?» [iv]

 

O valor da cidade velha não é cotizável em Bolsa

 

Da intervenção na cidade velha abandonada, talvez a principal maior valia seja o extraordinário sentido de lugar que só o tempo permite alcançar.

 

Este trunfo de valoração intangível, mas reconhecidamente enaltecido pelo cidadão comum — observem-se as romarias às apelidadas aldeias históricas e outros locais infelizmente teatralizados e congelados no tempo — deve ser explorado com delicadeza não caindo em nostalgia bacoca e opressiva. O novo e o velho deverão associar-se numa convivência de crescimento estimulante.

 

Apetece pegar nas palavras sem rodeios do arquiteto inglês Peter Cook aquando da sua última passagem por Lisboa e referindo-se ao crescimento eclético da cidade do Porto, possivelmente a principal fonte da sua singularidade:

 

“A cidade parece uma colagem. Vêem-se uns edifícios que parecem Art Décobelga, outros com azulejos brancos e azuis, outros que são simplesmente tolos. Vê-se uma rua que, de repente, simplesmente acaba, ali, aos nossos pés. Vêem-se duas pontes, uma em cima da outra, como se alguém não conseguisse decidir a que altura construir e tivesse escolhido fazer duas... Passei pouco tempo no Porto, apenas dois dias, há alguns anos, mas adorei.”[v]

 

É sabido que o tecido desocupado da cidade antiga não oferece situações estandardizadas, quer ao nível do uso habitacional, quer dos serviços, mas a nova filosofia recicladora tenderá a encontrar na variedade que é oferecida as valias necessárias ao potenciar de espaços mais criativos e polivalentes. Por um lado, acompanhando tendências de mobilidade profissional e das novas estruturas familiares (famílias mono parentais, divorciados, estudantes e trabalhadores deslocados, emigrantes isolados ou em grupo, etc.), por outro, reduzindo o fluxo de entradas e saídas da cidade através da viabilização da instalação de serviços dentro da cidade, fora do quadro artificial do open-space no office park dos arredores. Para tal a cidade disponibiliza recetáculos de trabalho verdadeiramente alternativos, através da reciclagem não somente das estruturas habitacionais, como dos espaços industriais devolutos e daqueles outros entretanto passados à reserva, como são as vastas áreas desmilitarizadas nos centros das cidades.

 

Por outro lado, o turismo apresenta-se hoje como fator estruturante no levantar de cabeça duma sociedade pós-império, desindustrializada e de costas voltadas para a exploração do campo e do mar. Representa elemento fundamental no processo de reabilitação das cidades, mas transporta consigo os graves perigos da gentrificação e desertificação provocada pelas novas ocupações de “curto prazo”. Pode transformar bairros antigos em gigantescas unidades de alojamento sem habitantes próprios e, noutra vertente, recorrendo a uma descontrolada utilização diacrónica dos espaços, explorando a mágica dos espaços da cidade velha através de práticas que a inviabilizam como espaço de habitar, por incompatíveis ao nível dos índices sonoros ou de poluição urbana que colocarão em risco a atração da cidade, por muito belos e históricos que sejam os seus espaços – neste âmbito, a famosa prática do botellon, veio já a ser fortemente cerceada nas cidades onde se tornou grotescamente famosa, Roma e Madrid[vi].

 

Assim, as qualidades arquitetónicas da cidade não provêm apenas da idade do seu tecido edificado ou das políticas de apoio à reabilitação, como é o caso das benesses apresentadas no recente RERU  Regime Excecional para a Reabilitação Urbana [aqui]. Deve ser sim um processo de seleção natural, pois em muitos casos, as estruturas existentes que equipam a cidade podem não apresentar interesse arquitetónico relevante ou dar-se o caso da recuperação do seu singular protótipo espacial dificilmente potenciar a instalação de novos programas.

 

Todos os edifícios são um caso único, principalmente quando falamos das pré-existências da cidade. O edifício antigo reflete relações de intimidade muito fortes quer com a estrutura geográfica do lugar, quer com as suas características sociais, históricas e morfológicas. A aura poética inerente à carga da memória é substanciada em camadas de patina não avaliáveis financeiramente, por não repetíveis. Esta caraterização derramada sobre o próprio desenho da cidade ou materialmente sobre muros de pedra ou betão confere-lhe autenticidade que, em paralelo à centralidade, facilidade de acessos e transportes e à convivência próxima das infra-estruturas culturais, sustenta a singular oferta disponibilizada pela cidade antiga.

 

  

FIM

 

 

Pós-Botellone no Trastevere, Roma

(foto do autor)

 

 


 

[i] Arquiteto, Prof. Universitário. Consultor da ANP para a Reabilitação Urbana

[ii] Território queimado, porque a sua mancha de contacto alastra-se em vazios inabitáveis, verdadeiras trincheiras dentro do tecido continuum que devia ser a cidade.

[iii] Fonte: I.N.E. Censo 1971 - 2011

[iv] Kevin Lynch. 1975. De qué Tiempo es este Lugar. Barcelona. Gustavo Gili. p. 32

[v] Peter Cook entrevistado em Lisboa por Vanessa Rato em Fevereiro de 2010. Disponível na internet em: http://ipsilon.publico.pt/artes/entrevista.aspx?id=250321

[vi] Sobre o fenómeno do botellon  e a decadência de Madrid, consultar artigo por Rafael Méndez e Álvaro de Cózarhttp://elpais.com/elpais/2013/10/09/inenglish/1381325756_737127.html

 

 

  
 
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