Lojas Históricas  

 

 

Artur Soares Alves

9-abr-2016

 

 

Notícias desta semana confirmam a intenção do Governo de produzir legislação que visa proteger um ente indefinido a que se chama lojas históricas. Todavia, por enquanto, ainda ninguém sabe dizer como é que uma loja merece esse nobre adjetivo e, portanto, “loja histórica” é apenas uma expressão mágica que pode significar o que se quiser.

 

É certo que em termos vagos e gerais se compreende a ideia e a forma como o público pode aderir sentimentalmente a um princípio vago, sobretudo quando os bons sentimentos não custam nem um tostão ao seu portador. Quando o Governo anterior quis fechar a Maternidade Alfredo da Costa — situada no meio de uma cidade envelhecida e sem dinamismo demográfico — caiu o Carmo e a Trindade, e pensou-se em assassinar o Conde Andeiro. Cidadãos furiosos manifestaram a sua indignação contra um tal ato “economicista” e exigiram a manutenção da Maternidade porque nasceram lá, ou nasceu lá a prima ou, em todo o caso, alguém nasceu lá. E, muito naturalmente, o Governo cedeu porque quando se pesam custos políticos versus custos financeiros a balança só pode pender para um lado. Afinal, os custos políticos são pagos pelos governantes mas os custos financeiros são pagos pelos contribuintes.

 

As pessoas ligam-se emocionalmente a edifícios que tiveram um certo papel nalguma altura das suas vidas, o café onde iam jogar bilhar, o cinema do primeiro namoro, o jardinzinho onde brincaram. Quando lhes chega a notícia de que um desses lugares vai fechar ou ser usado para outro fim, o quidamindigna-se porque é como se lhe retirassem uma parte da sua memória. E o certo é que contra esses sentimentos não há racionalidade financeira que tenha vencimento — sobretudo se a indignação for a custo zero.

 

Portanto, para cada um a loja histórica é o que faz parte da sua memória, pode ser um lugar onde a fruta era particularmente saborosa, mas também uma sapataria que se distinga pelo gosto dos armários em carvalho ornados de florões. Cada um tem a sua história e as suas referências. Mas o problema só se põe quando o negócio vai mal porque o cliente que guarda essas tão mimosas recordações já mudou de bairro ou prefere comprar no centro comercial.

 

E quando o senhorio, nos termos da lei, pretende um aumento de renda verifica-se que a loja só está em funcionamento porque paga uma renda baixa — isto é, a loja só pode funcionar se o senhorio a financiar. Faça-se o que se fizer, para desgosto de alguns cidadãos alguns desses negócios, já condenados a termo, irão mesmo fechar. Mas o fatal destino pode retardar-se e a ilusão manter-se viva por algum tempo.

 

É perante este cenário que alguns comerciantes mais astutos lançaram a ideia de “lojas históricas”, lojas cujo valor moral é de tal maneira elevado que em caso algum devem fechar, a perda para a cidade seria incomensurável. Como ousar cobrar uma renda de mercado a uma dessas lojas? Acaso será possível pôr um valor a um poema, a um quadro, a uma escultura, a uma memória, a um sonho? Não terá o senhorio um coração de pedra pois que apenas lhe interessa o valor da renda sem cuidar do desgosto causado a tantos dos seus patrícios?

 

Em todo o caso não parece fácil definir quando uma loja deve ser considerada histórica. Mas essas dificuldades são pouca coisa para os espíritos matreiros que fazem o ofício de dar ao afilhado uma grossa fatia do pão do compadre. Uma primeira ideia foi defini-las pela idade de tal forma que qualquer loja arrendada antes 1980 fosse considera histórica e beneficiasse do concomitante privilégio de ser financiada pelo senhorio. Mas a matreirice ia um tanto longe de mais e a ideia de fazer histórico igual a velho caiu sem estrondo.

 

E deste modo parte-se para uma legislação sobre um objeto acerca do qual não existe a priori um conceito. O resultado é fácil de antever — loja histórica vai ser qualquer local que técnicos municipais adrede designados considerem com tal a partir de princípios vagos. Mas, por falta de conceitos precisos, afinal o que vai contar serão as influências que o arrendatário consiga no campo político ou no campo mediático. Na maior parte das vezes uma loja histórica será aquela que a imprensa designar como tal, com o cortejo habitual de fotografias e depoimentos da intelectualidade mediática.

 

Então teremos a tragédia do costume, o comerciante consegue melhores resultados se andar pelos corredores do poder ou pelas redações dos mediado que dedicar o seu tempo a melhorar o negócio servindo o cliente que deveria ser a única fonte do seu lucro.

 

Só há dois tipos de loja

 

Dê-se à vontade curso às emoções e voltas às palavras, o certo é que só há dois tipos de comércio: o que dá lucro porque tem clientes; e o que dá prejuízo. Os negócios que só sobrevivem com prejuízo para alguém, ou os negócios que dependem das ajudas do Estado (isto é do contribuinte) não são negócios verdadeiros. De uma forma ou de outra são moralmente atividades de extorsão porque a fonte da receita não são clientes voluntários mas sim pessoas inocentes obrigadas a contribuir com o seu óbolo para que o pseudo-negócio prospere.

 

Para irritação de muitos automobilistas há um “negócio” que segue este modelo, os arrumadores de automóveis. O “cliente”, que muitas vezes encontrou o lugar por si-mesmo, paga perante a ameaça implícita de um risco na pintura. É uma extorsão mas o arrumador não é personagem sofisticado com carta patente, e não tem acesso aos media nem aos grupos parlamentares.

 

Os bons locais de negócio são em número escasso e só há uma maneira racional de selecionar os seus ocupantes — e que é o método mais generalizado — pelo preço. É assim que se seleciona quem vai ocupar os melhores lugares na bancada do estádio, é assim que se seleciona quem veste camisas de seda, é assim que se seleciona quem se senta à mesa dos restaurantes chiques.

 

Quem deve ocupar os locais de comércio mais apetecidos são as atividades cuja produtividade lhes permite oferecer certos valores de renda; e não nos esqueçamos de que é o comprador quem faz o preço. Valores que as “lojas históricas” não conseguem pagar, ou que esperam não pagar graças ao subsídio do senhorio imposto pelo Estado — e assim se habilitam a lucros artificiais.

 

Com isto o Estado prejudica também os negócios mais eficientes por criar uma escassez artificial de locais de negócio, uma vez que uma parte está ocupada por comércios ineficientes. A lista dos prejuízos causados à economia vai muito mais longe do que o visível.

 

Foi assim com o congelamento de rendas habitacionais que atirou o quidamque trabalha em Lisboa para uma casa comprada a crédito na periferia. Atrás disso veio esse movimento pendular diário de automóveis e os engarrafamentos, e a necessidade de construir autoestradas para desanuviar um tanto a circulação e os nervos.

 

Mas se é pela comunidade…

 

Contudo, podemos sempre admitir que a comunidade, isto é, todos nós o povo, a comunidade tem um interesse vital na sobrevivência de uma entidade a que chamamos “loja histórica”. Nestas matérias pode haver consensos muito fortes, é um facto que ninguém iria propor transformar os Jerónimos num hotel. Há um entendimento coletivo de que o Mosteiro deve ser conservado como um símbolo que merece a nossa reverência.

 

E quem paga essa conservação? É precisamente a mesma comunidade que beneficia moralmente da permanência do monumento[i].

 

Então, se a comunidade beneficia da existência da loja histórica compete a essa mesma comunidade subsidiar o comerciante, e não impor a um particular o ónus desse benefício que, afinal, é coletivo.

 

 

FIM

 

 



[i] É certo que é história antiga mas há uma razão para o recordarmos. Nenhum particular é forçado a financiar a conservação dos Jerónimos mas a aquisição tem origem num esbulho que o Estado liberal fez às ordens religiosas (Joaquim António de Aguiar em 1834) para depois vender os bens em hasta (pouco) pública e assim financiar a desordem política que se criou no Reino. Vale a pena recordar a história antiga porque ela se repete sempre que as rédeas do Estado caem nas mãos de quem se força a ignorar os factos, sejam económicos ou morais, que compõem a realidade.

   

 

 

 

 

 

  
 
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