Tirar Sangue de uma Pedra
Artur Soares Alves 8-set-2016
Diz-se que não vale a pena espremer uma pedra para tirar sangue, quando muito ela desfaz-se em pó — e depois nem sangue, nem pedra. Isto é o que se diz, mas há quem tenha opinião diversa e por isso é que os impostos sobre o imobiliário não cessam de crescer após curtos períodos de alívio. O assunto já aqui foi abordado em Ilusões Financeiras e Fiscais mas em 1939 a matéria era igual como se pode ver neste importante documento Grave e Urgente: Valores Matriciais.
A base é sempre a mesma, o Estado tem despesas a que não quer renunciar e alguém tem que pagar. Os impostos aumentam, a economia sofre mas os benefícios dos amesendados ao Estado ficam intactos.
O último ato do Governo foi a publicação do Decreto-Lei n.º 41/2016, de 1 de agosto, que deu matéria suficiente para fazer concorrência mediática aos fogos florestais. No tocante ao IMI a parte mais importante foi a alteração da tabela I do artigo 43º do Código do IMI, conforme se mostra a seguir:
Artigo 43.º Coeficiente de qualidade e conforto 1 - O coeficiente de qualidade e conforto (Cq) é aplicado ao valor base do prédio edificado, podendo ser majorado até 1,7 e minorado até 0,5, e obtém-se adicionando à unidade os coeficientes majorativos e subtraindo os minorativos que constam das tabelas seguintes:
TABELA I Prédios urbanos destinados a habitação
A publicação deste decreto-lei, no tocante ao IMI, provocou alarme em todo o País, como exemplifica este artigo do Observador. A ideia de um aumento de 20% no VPT e consequentemente no IMI por aplicação de um critério subjetivo — isto é, porque um avaliador adrede nomeado entende que a casa tem uma vista bonita ou uma boa exposição solar — é voltar atrás na fórmula matemática que desde 2003 tem sido considerada como referência para todos os efeitos fiscais.
É certo que a “localização e operacionalidade relativas” já vinha da Lei 53-A/2006, de 29 de Dezembro, se não desde a primeira versão do CIMI em 2003. Não parece que tenha sido aplicada e previa tanto um aumento como uma diminuição do VPT, num mesmo valor até 5%. Agora são 20% para cima e 10% para baixo. Porventura 20% a mais por ter uma vista sobre a serra, 10% a menos por ter a casa encostada ao eixo Norte-Sul. Só a prática nos dirá.
O alarme causado pela publicação do decreto-lei levou o Governo, mais ou menos, a contradizer-se mas não tenhamos dúvidas de que não se vai fechar a porta a mais esta oportunidade de recolha de fundos. O problema é estrutural — o Governo sabe quanto combustível precisa para sustentar a máquina trituradora de riqueza que tem vindo a ser ampliada desde os anos setenta. Retira-se ao cidadão o que for preciso, incluindo as poupanças com que ele pensava assegurar a velhice, sufoca-se a economia — faz-se tudo, menos moderar os gastos do Estado.
O projeto do IMI progressivo é uma dessas componentes, que é examinada neste mesmo site, aqui. Ao mesmo tempo que as casas vão ficando vazias e as lojas fecham. E sobre isso temos um pequeno segredo para contar ao Governo, os comércios vão continuar a fechar e loja desocupada é loja para sempre fechada.
De facto, o que tem mantido muito comércio aberto é um processo de descapitalização e a esperança de que as coisas melhorem. Foi o caso do IVA da restauração que não levou a aumentos de preços. O comerciante continua a tirar o café da máquina que já amortizou mas não tira é lucro suficiente para, mais dia, menos dia, comprar uma máquina nova. Quando essa necessidade ocorrer ele vai constatar que anda a trabalhar para aquecer, então fecha o café e emigra. O autarca olha para a loja abandonada e alegra-se porque vê ali IMI a triplicar e taxa de proteção civil aumentada, o que ele não vê é a economia a extinguir-se por falta de oxigénio.
Porque o grande problema político-fiscal é a crença, a fezada, de que é possível tirar sangue de uma pedra se a espremerem com pressão suficiente.
Imposto sucessório
Por ora tem havido silêncio nesta matéria mas não a deixemos de lado até porque, para além de um assunto fiscal é uma matéria de moralidade pública, uma questão de decência. Comecemos por uma citação:
“É um imposto que existe na generalidade dos países e que visa corrigir a distribuição de riqueza no momento em que uma pessoa recebe por herança ou por doação algo que não ajudou a construir.” [Discurso de Aníbal Cavaco Silva em Campo Maior, 27 de Agosto de 2011]
Uma vez que já fomos assim instruídos de que não existe uma relação especial entre pais e filhos, vamos respeitosamente elaborar algumas considerações, para começo, de natureza moral.
Em 1932 o filho de 20 meses do célebre aviador Charles Lindbergh foiraptado da própria casa, tendo sido pedido um resgate de 100.000 dólares, quantia astronómica na época. Os pais pagaram mas o bebé não foi devolvido e 2 meses depois foi encontrado seu cadáver. O assunto causou tal emoção mundial que nos anos 1960 ainda se falava nele.
Ora, o que importa anotar é que o criminoso sabia de ciência certa aquilo que o Professor Cavaco Silva parece ignorar, isto é, que Lindbergh pagaria o que fosse preciso para reaver o seu bebé, e apesar de este em nada ter contribuído para a formação da fortuna Lindbergh. Por isso, o raptor não foi raptar a filha do canalizador e pedir dinheiro ao Lindbergh. Parece que afinal alguma relação, e uma relação intensa, existe entre pais e filhos.
De facto, os raptos de crianças e adultos para extorquir dinheiro aos pais é um acontecimento comum. No passado, quando se queria ter a certeza do cumprimento de um acordo entre dois reis, era costume trocar reféns e os reféns eram precisamente príncipes ou infantes filhos dos reis em questão enviados para viver na corte estrangeira. Alguma coisa convenceu as partes de que a vida e a liberdade de um filho eram mais valiosas para o rei do que as vantagens de faltar à palavra dada.
Coisas de gente antiga... Num plano ligeiramente diferente temos um episódio da Guerra Civil de Espanha (1936-39), o Alcazar de Toledo (ver na versão inglesa porque a versão portuguesa foi truncada). Do lado de dentro estavam os franquistas comandados pelo coronel Moscardó e não queriam sair, do lado de fora estavam os republicanos que queriam entrar. Como a situação não se resolvia estes capturaram o filho de 16 anos do coronel ofereceram trocar a vida do moço pela rendição do pai. O coronel recusou e eles mataram-lhe o filho.
Não sabemos se há causa ou pátria que valha a vida de um filho. Todavia, a ação do coronel Moscardó foi de tal maneira vista como contranatura que só pôde ser considerada como um ato de heroísmo equivalente, ou acima, de dar a própria vida. Isso fez dele um mito da Espanha franquista, e um exemplo em geral das virtudes guerreiras.
Mas as histórias não são todas iguais. Por exemplo, o filósofo francês Rousseau teve três filhos que abandonou como quem doa roupa usada para a obra social. Mas isso talvez se situe num quadro coerente. Rousseau foi o tal filósofo iluminista que escreveu que a propriedade é a origem das desigualdades entre os homens, o que mereceu um comentário sarcástico de Voltaire, outro iluminista. Foi Rousseau quem concebeu o conceito de vontade geral à qual se devem subordinar todos os indivíduos, foi o seu legado que inspirou Robespierre o fornecedor em massa de gente para a guilhotina. É Rousseau quem inspira essencialmente o pensamento político moderno.
Há passado, presente e futuro. Na ordem natural das coisas, ao contrário dos animais, os homens não vivem só para o presente, o planeamento do futuro é uma ação permanente do indivíduo pensante. Desse futuro faz parte a geração seguinte, afinal aqueles que prosaicamente pagam as nossas reformas (em sentido geral e não no sentido atual do Estado social). Se a geração seguinte não prestar então estaremos condenados pois que é das sobras da riqueza que ela cria que se pagam as ditas reformas.
Por isso há um interesse da parte da geração atual em criar e instruir filhos capazes e com valores morais sólidos. A partir de um certo momento é em nome desta estratégia que o indivíduo produz e cria riqueza porque julga que pode transmiti-la aos filhos, porque está a produzir para o futuro. Mas, tudo isto sabemos nós que está longe da compreensão dos longínquos discípulos de Rousseau que governam os estados e que, agora, se queixam do declínio da natalidade.
Passando a questões mais práticas, lançado o imposto quais são os bens cuja herança o vai pagar efetivamente? Em primeiro lugar o imobiliário e o dinheiro líquido, e provavelmente as participações em empresas. No caso do imobiliário olhe-se para a tabela seguinte:
Portanto, se não houvesse obras de reabilitação total, se os prédios estivessem sempre arrendados, se não houvesse outras alcavalas, e se o inquilino pudesse pagar acima dos limites do RABC, o arrendamento traria uma rendibilidade de 4,38%. Ora, se a taxa do imposto sucessório for de 20% isso significa que o herdeiro andará quase 5 anos a pagar o imposto. E isto seria uma situação ótima que não existe em caso algum e pressupõe um pagamento escalonado e sem juros. Mas duvida-se que o Estado se contente com 20%.
No mundo real, no seu conjunto, um património imobiliário pode render 3%, com alguma sorte chegar aos 3,5%. Então, o número de anos sobe facilmente para seis ou sete.
É certo que o anúncio da reintrodução do sucessório fala em patrimónios acima de um milhão de euros. Porém, como se interpreta isso?
· Será, como no imposto do selo, 999.000 euros não paga, mas um milhão paga? · Ou será que o imposto incide sobre o valor que exceda um milhão?
Espera o Estado que um herdeiro de um património de dois milhões de euros tenha, digamos, 400.000 euros em líquido para pagar ali o imposto sem mais tir-te nem guar-te? E se não pagar vai o Estado confiscar-lhe prédios — atribuindo-lhes o valor do VPT — até ao ponto de o imposto ficar pago? E depois fica com mais imobiliário para gerir, ou vende em hasta pública por metade do valor e culpa o proprietário herdeiro?
Por vezes ocorre um sentimento de angústia perante aquilo que os governantes mostram desconhecer. Um proprietário urbano não tem dinheiro em líquido em quantidade que se veja, em geral nem tem com que mandar cantar um cego. Mas quando o tem, o seu interesse e o interesse da comunidade é que ele o ponha no negócio, isto é, remodele os seus prédios e os ponha no mercado. O que não interessa é que o guarde numa arca e deixe os prédios a cair. Com o sucessório é isso que se pretende aparentemente pois que o Estado não sabe da arca e os prédios degradados valem tão pouco que a sua perda nem é um prejuízo. Prejuízo terá o proprietário que modernizou a sua propriedade para o Estado a venha a confiscar por falta de liquidez para pagar o imposto sucessório.
É verdade que existiu imposto sucessório até há pouco tempo. Mas a percentagem era moderada e as matrizes desatualizadas. Não deixava de ser um imposto absurdo e nos tempos mais antigos foi muito pesado (ver o documento de 1939). Na sociedade de informação é esta a maior riqueza, mas que fica isenta de impostos. O que nos leva a pensar se o imposto sucessório não corresponde acima de tudo a uma objetivo ideológico.
E no tocante às fortunas verdadeiramente grandes, cujos titulares podem recorrer a processos de manipulação fiscal, o Estado nem um cêntimo verá.
Factos
Quando olhamos para a coletividade como uma unidade económica, o modo mais barato de proporcionar habitação a toda a gente é o arrendamento. A aquisição de casa própria tem custos para as famílias, entre os quais a falta de mobilidade em relação ao mercado de trabalho. O assunto foi estudado por vários autores, por exemplo, aqui.
O que pode significar a compra de habitação vê-se hoje no caso das famílias que compraram casa e depois perderam o emprego e tiveram que emigrar. Hoje em dia estão a pagar uma renda onde vivem e uma prestação ao banco de uma casa que não usam.
Por outro lado há os cidadãos que se sentem à vontade para comprar casa e desejam um espaço a que podem chamar sua propriedade. Não existe razão válida para que não o façam, desde que o façam com prudência — não excluindo de forma alguma o recurso ao crédito. Todavia, o nosso problema é outro. Através de leis adrede criadas e mantidas obrigaram-se as famílias a endividar-se para comprar o teto que lhes fazia falta. Para isso, para que não houvesse escolha mantiveram-se cirurgicamente em vigor as leis de congelamento das rendas e uma fiscalidade espoliativa.
E foi o reino febril do crédito. Como não havia poupanças em Portugal para sustentar uma tal febre importou-se dinheiro para emprestar aos compradores. O resultado começa a estar à vista.
O custo da habitação é uma questão de interesse coletivo porque vai refletir-se nos salários e daí no preço dos bens exportados e dos bens transacionáveis em geral. Por isso é antieconómico aumentar artificialmente o preço do arrendamento, através de impostos e outras alcavalas.
É certo que todos sabemos que Portugal não deve competir no mercado mundial através de baixos salários. É axiomático e três vezes verdadeiro. Porém, muito em segredo, diz-se que a Alemanha compete no mercado mundial através de salários baixos… Até se diz que mais ninguém conseguiria produzir um Mercedes a este preço, como o consegue um operário alemão. Parece que tem a ver com produtividade, mas isso decerto são boatos…
FIM
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