COMO UM AVEJÃO QUE NOS SEGUE

Artur Soares Alves

Diretor da ANP

 

Na data em que este artigo é escrito (fevereiro de 2020) o noticiário provindo da China é dominado pelo coronavírus.

 

A predominância deste problema sério de saúde pública atirou para o esquecimento a questão de Hong Kong. Ora, a questão das liberdades públicas e económicas em Hong Kong resume-se na seguinte pergunta: alguém, no seu perfeito juízo, pode acreditar que o governo chinês, estando numa posição de força, cumpre alguma promessa, quando tal não lhe convenha? Em todo o caso, milhões de habitantes de Hong Kong acreditaram, ou talvez, fizeram das fraquezas forças para acreditar. De contrário, dez anos antes da transferência de Hong Kong para a China, os negócios que fazem a prosperidade da antiga colónia inglesa começavam a deslocar-se para lugar mais seguro, digamos, Índia, Taiwan, Singapura, Indonésia, Filipinas, Austrália. A oligarquia chinesa ia apoderar-se de edifícios vazios, onde poderia instalar quiçá residências para estudantes…

 

Estas considerações vêm muito a propósito de governos tirânicos que facilmente dão o dito por não dito quando se trata de fazer mão baixa à propriedade dos cidadãos. Para o caso, não importa se o regime é democrático ou ditatorial, a quem é roubado na encruzilhada pouco importa a conversa do tratante.

 

Atualmente, seja pela hábil sabedoria dos governantes, seja por circunstâncias ocasionais, vive o país num clima de prosperidade económica. O imobiliário sobe de preço, especialmente em Lisboa e Porto, mas também por todo o país. A mediação voltou a ser rentável e a oferecer emprego aos desempregados de outros setores económicos. E o mais interessante são alguns dos investidores no arrendamento — portugueses ou estrangeiros que estão a comprar casas antigas para arrendar. Muitas vezes com preferência por casas já ocupadas porque, deste modo, é fácil calcular a rendibilidade do investimento.

 

A ILUSÃO DA PEDRA

Compreende-se esta forma de empate de capital. As remunerações dos depósitos bancários estão próximas de zero, tanto mais que os bancos centrais consideram que zero-por-cento é a taxa de juro ideal para voltar ao caminho da real prosperidade económica… o que faz pensar que a atual prosperidade, afinal, não é tão sólida como se diz!

 

Ora com o nível atual das rendas e o alojamento local, o arrendamento oferece melhores remunerações e a isso soma-se a ilusão da pedra. Isto é, enquanto que um investimento financeiro é uma folha de papel, uma casa é um bem material sólido e assente num lote de terreno.

 

A compra de casas em sofrível estado, a sua reparação e lançamento no mercado é um ato com interesse social porque permite o acesso à habitação a mais pessoas e a melhores preços. Até mesmo o alojamento local, pesem embora os prejuízos causados ao sossego dos condóminos, tem a utilidade social de trazer ao país turistas que não poderiam pagar um hotel. Quem investe no arrendamento está a prestar um serviço ao país que a classe política, sempre preocupada com o bem-estar dos seus súbditos, reconhece e acarinha, como o provam as práticas dos governos pregressos, sobretudo desde Afonso Costa para cá. Pelo menos, é o que consta…

 

Invistamos, pois, em edifícios que trazem bom rendimento, em vez de guardar o aforro nos bancos, onde ele não está totalmente seguro. Porém, há duas questões em que o investidor deveria cogitar, antes de trocar o seu dinheiro pela dita pedra.

 

A CONSTRUÇÃO DAS PIRÂMIDES ERA DINHEIRO EM CAIXA

Para começar, o investimento no imobiliário é um investimento a muito longo prazo que, espera-se, irá gerando um pequeno rendimento, cerca de 3% líquido, se o considerarmos ao longo do tempo e não em períodos curtos de atividade especulativa. É um ótimo complemento de reforma se a demagogia política não se intrometer na governação. Em todo o caso, o investidor prevenido olha para a rendibilidade atual e pergunta se a situação se manterá para todo o sempre, até à consumação dos séculos. Fazer a pergunta, é dar a resposta, embora não falte quem garanta que o investimento imobiliário é 100% seguro, porque haverá sempre procura de casas. Tal como no Antigo Egito não se duvidava de que a construção de pirâmides era dinheiro em caixa.

 

Todavia, a incerteza inerente ao mercado não é nada, comparada com a incerteza da política. Que sabem os atuais investidores acerca do passado do arrendamento? Saberão que desde 1910 (com mais acuidade desde 1914) até 2012 vigorou o congelamento das rendas, e que este só terminou devido à imposição da troika? Dito de outro modo, há oito anos ainda havia centenas de milhar de rendas congeladas em valores do tipo de 30 euros, em casas e em lojas; ver http://pl.proprietarios.pt/artigos/b49/um-seculo.htm. A Lei 31/2012 aliviou este problema, acabando com as rendas cujo valor mais parecia destinado a gozar com o proprietário.

 

QUEM IGNORA OS ATROPELOS DO PASSADO ESTÁ A EXPOR-SE A SOFRER OUTROS IGUAIS

A libertação da propriedade trazida pela Lei 31 atraiu ao mercado novos pequenos investidores e, se tivesse prevalecido um ambiente de segurança, teria contribuído para o equilíbrio de todo o mercado imobiliário. Todavia, logo que se firmou a hegemonia da atual governação, começaram as ameaças à depreciativamente chamada Lei Cristas. E as ameaças concretizaram-se em 2017, nomeadamente a Lei 43/2017, de 14 de junho. Portanto, ao fim de cinco anos começa o desmantelamento de um edifício jurídico que nem sequer era muito rigoroso na correção das arbitrariedades cometidas durante um século. Se o quadro jurídico nem sequer se aguenta durante 5 anos, como se pode acreditar que ele sirva de garantia a investimentos com prazos de vinte a cinquenta anos? Cada um sabe de si, mas quem ignora os atropelos do passado está a expor-se a sofrer outros iguais.

 

Porém, não é só a repetição do congelamento — ou o abaixamento forçado dos valores das rendas — que paira sobre a propriedade; sobre isso até se leem outdoors espalhados por Lisboa. Outra componente problemática é a fiscalidade. Começou com a ameaça do imposto sucessório, continuou com a introdução do AIMI, e agora sugere-se o englobamento do rendimento predial em IRS, que vai atirar o imposto de 28% para 50%.

 
Em boa verdade, o autor nem sequer pretende causar alarme social aventando a possibilidade de Portugal sair do euro. O euro foi um sucesso num aspeto, a estabilidade da moeda. Não será para amanhã uma tal ocorrência, mas pode ser para daqui a dez anos. Se Portugal sair do euro, o instinto do governo, seja qual for o partido, é inflação seguida de congelamento das rendas.

 

Haverá investidores que pensam que numa área económica e política que é dominada pela Alemanha e a França, haverá sempre alguma proteção dos direitos de propriedade tal como há proteção a certos direitos individuais, nem que seja pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem. Pode ser… Contudo, em França discute-se a lei Lagleize cujo objetivo é impedir a “especulação” e cujo método é o habitual ataque ao direito de propriedade. O princípio que rege esta lei seria a separação do direito de propriedade em dois direitos: o direito ao solo e o direito ao edificado. O cidadão é proprietário do edifício, o solo pertence a uma “coletividade local” e o suposto proprietário paga uma renda pelo uso do terreno.

 

Repetindo uma frase célebre, “não faço doutrina nem dou conselhos; digo apenas o que me parece.” Toda a atividade económica move-se num contexto ideológico, político e legal. Se o contexto for favorável, a riqueza é criada e inevitavelmente distribuída; pelo contrário, se a injustiça campear, cada um esforça-se por defender o seu pedaço contra a ação predatória do Estado e dos grupos hegemónicos. Cada um terá de avaliar se o contexto português é compatível com os valores atualmente praticados no imobiliário, se nos espera o lucro ou a ruína. Atrás de nós, seguindo-nos como um avejão agoirento, estão cem anos de ataque ao direito de propriedade.


                                                                  FIM

    

 

  
 
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