Coisas Práticas. Estratégia

 

 

Artur Soares Alves

8-Dez-2011

 

 

 

“Coisas Práticas” foi escolhido propositadamente para título de artigos que tratam de assuntos teóricos, como a doutrina e a estratégia. De facto nestes artigos não se trata daqueles assuntos práticos que ferem os proprietários urbanos como os inquilinos que não pagam, os impostos que absorvem o rendimento da propriedade, os prejuízos reais e líquidos que certos prédios representam. Sobretudo, nestes artigos não apresentamos métodos práticos que, em pouco tempo, restituam ao proprietário a propriedade que, desde há um século, lhe tem sido retirada. E se não os apresentamos é porque eles não existem. Os problemas que afectam a propriedade urbana vêm de muito longe e têm muitas origens. A sua compreensão é uma etapa necessária à sua resolução.

 

Façamos um paralelo. Suponhamos que o leitor tem um primo na Dinamarca, num local chamado Almstofte. O primo, que tem tido sucesso económico, vai casar o filho e faz toda a questão na presença do leitor que decide fazer a viagem de automóvel. Toda a gente concordará que o planeamento da viagem é um passo indispensável. Durante um dia ou dois o leitor vai estudar o trajecto em vários mapas, escolher estradas e hotéis, etc. O que o leitor não vai fazer é entrar no carro e conduzir à toa esperando que a sorte o leve ao seu destino. Desde que liga o motor aquilo de que o leitor mais necessita é de conhecer o rumo. Qualquer pessoa pode dizer que, na viagem, há uma parte teórica e uma parte prática. A teoria é o estudo do trajecto, a prática é a condução. O que ninguém dirá é que se pode passar à condução antes de conhecer o rumo. Assim, o estudo do trajecto é tão importante como a condução em si-mesma.

 

Quando não se conhece o porto de destino não há vento que sirva(Séneca[1]). Ou, como também se diz, nada de mais prático do que uma boa teoria.

 

No artigo anterior tratámos da questão doutrinária, este artigo tratará da estratégia. Se a doutrina é imutável porque se apoia nos direitos inalienáveis do indivíduo enquanto ser humano, já a estratégia tem que ter em conta as circunstâncias históricas, económicas e sociais e todos os factores que são sujeitos a mudança. Se o objectivo é mudar as ideias correntes e a legislação, temos que ter em conta os preconceitos das pessoas a quem nos dirigimos. É um facto que, em geral, esses preconceitos tornam o debate impossível. Porém, por que se trata de lugares comuns e não de factos bem fundamentados, esses preconceitos são circunstanciais e sujeitos a mudar perante o peso dos acontecimentos correntes. A sua desmontagem e a evidência das suas contradições é um elemento de intervenção indispensável.

 

social

 

Nada como pronunciar a palavra  social para calar de imediato o adversário. Não é preciso avançar nenhum argumento, nenhuma prova… Basta dizer que uma certa política é anti-social e está tudo provado. Em termos mais próximos da questão do arrendamento, o argumento social enuncia-se assim: “não deve ser aprovada nenhuma lei que prejudique um só inquilino pobre que seja”. Consequência: as rendas congeladas não devem ser corrigidas porque haverá um conjunto de pobres que sairá prejudicado. O inquilino rico ou da classe média e que poderia pagar 10 vezes a renda que paga sem o sentir na sua bolsa, não deve ser incomodado com aumentos porque estes iriam prejudicar alguns pobres… Seria uma política anti-social. 

 

A outra consequência é que a loja de luxo ou o escritório de advogados também não devem ser incomodados pela mesma razão social. O inquilino comercial esconde-se atrás do inquilino habitacional e este, quando pertence à classe média, esconde-se atrás do inquilino pobre.

 

Porém, não tem que haver uma lei de aplicação universal (que é o que convém aos beneficiários do congelamento). Uma lei que se aplicasse ao arrendamento não-habitacional e aos habitacionais que podem pagar traria um enorme avanço ao problema, desde que não criasse exceções artificiais que a tornassem ineficaz.

 

A importância que o social tem na nossa vida provém da solidariedade que se criou entre os humanos, reforçada largamente pelo Cristianismo e pelo dever de ajuda aos infelizes, dentro do princípio revolucionário (na época) de que todos somos irmãos. Este dever de esmola é um dever de consciência, é um encontro entre o indivíduo e Deus. Porém, o Estado transformou a solidariedade numa função sua, carregando nos impostos, criando ineficiências e criando oportunidades para o crescimento maciço do número de free-riders. A pobreza não é, as mais das vezes, uma fatalidade mas sim uma escolha. Eis um facto a apontar sem medo da retórica social.

 

Alianças

 

Uma questão muito delicada diz respeito às alianças. Se houvesse na consciência colectiva um firme respeito pela propriedade alheia nenhum destes problemas se poria. Todo o ataque à propriedade seria condenado como um roubo. Todavia, quando os beneficiados do confisco da propriedade alheia são muitos e os prejudicados são poucos torna-se impossível defender os direitos do proprietário. Um caso típico é a expropriação para abrir uma estrada.

 

Por este conjunto de razões é preciso alargar a frente de defesa da propriedade mostrando que o desrespeito pela propriedade a todos afecta, prejudica a economia em geral e todos os cidadãos, exceptuada a minoria que vive efectivamente à mesa do orçamento. É precisamente o que está a acontecer com o aumento do IMI que se prevê brutal. Depois de ser forçado a comprar uma habitação por falta de alternativas, o cidadão agora é obrigado a pagar uma “renda” por essa mesma habitação.

 

Inserida na estratégia a política de alianças está sujeita a mudanças, conforme mudam os interesses dos possíveis aliados. Porém, há três princípios permanentes: (1) a aliança é possível se há um objetivo comum; (2) considerações subjetivas e pessoais, se não podem ignoradas, também não afetarão a aliança; (3) “a panela de barro não se junta à panela de ferro”, isto é, os proprietários urbanos não podem ser peões de interesses alheios. Os interesses dos proprietários coincidem com os interesses da justiça e do progresso, não servem interesses económicos de entidades poderosas que procuram usar em seu proveito o poder do Estado.

 

O direito de propriedade não se divide. Ele tanto diz respeito às rendas congeladas que lançaram na pobreza milhares de proprietários e inviabilizaram quarteirões inteiros de cidades, como diz respeito a actos arbitrários, e atrabiliários, dos municípios como a pretensão de demolir o chamado prédio Coutinho em Viana do Castelo. Tal como também diz respeito à defesa da poupança e aos impostos que somente vão incidir sobre a poupança, seja esta em dinheiro ou em bens físicos.

 

O direito de propriedade não tem fronteiras, sobretudo dentro da Europa. Após a queda do comunismo surgiram muitos movimentos nos países de Leste que tinham sido ocupados, visando recuperar propriedade arbitrariamente confiscada pelos comissários políticos, tantas vezes para uso pessoal. Noutro plano têm os Ingleses, e outros, lutado contra as ações expropriatórias de municípios do Sul de Espanha. Por todo o Ocidente, por todo o mundo, vai acabando a passividade dos proprietários que se pretende expropriar através de todos os truques que a imaginação concebe[2].

 

Os proprietários, enquanto movimento, não têm política. E não têm política porque esta é mais uma matéria de coração do que de razão, as escolhas que façam pertencem ao foro pessoal. Já farão mal se apoiarem políticos que abertamente proclamam e praticam contra os seus direitos, favorecendo clientelas noutros sectores da população. Sobre os partidos políticos vale o que se disse sobre a panela de barro que nunca deve juntar-se à panela de ferro. Incorporando a elite do pensamento político, tendo nos seus quadros tantos intelectuais, compete aos partidos políticos compreender o mal que fazem à economia os ataques ao direito de propriedade e formular soluções equilibradas para os problemas do passado. São as soluções que merecem aprovação ou reprovação, não a ideologia proclamada por quem as propõe.

 

Diz-se que “não há pau que seja tão torto que não sirva, ao menos, para fazer um arrocho”; não há aliança tão estranha que não valha a pena se trouxer vantagem aos proprietários, sem que seja injusta. Os inquilinos são tão diferentes entre si como os proprietários o são. É certo que as relações entre as duas partes são regidas por leis injustas e que põem uma contra a outra. Porém, mesmo assim, inquilinos e senhorios podem encontrar pontos de interesse em comum e tomar acções que sejam favoráveis às duas partes. Terá sempre que existir um contrato e o grande problema é saber se o Estado o faz cumprir, ou se vem com a retórica da parte fraca. Como se vê, o problema está sempre no mesmo sítio, quiçá com residência fixa.

 

As relações com a imprensa são uma matéria muito delicada e que merece um estudo por si-só. Por um lado os media são o suporte da comunicação de ideias, são o meio principal que os proprietários podem usar para divulgar as suas razões perante a opinião pública. Por outro lado, como empresas osmedia cumprem objectivos estratégicos de quem os financia. Os jornalistas, tomados individualmente, tendem a ser aquilo a que se chama “de esquerda”. Em todo o caso, sendo a questão complexa e sendo genericamente os media hostis ao direito de propriedade, nem por isso são capazes de ocultar sistematicamente a verdade, especialmente nesta época em que a crise do sistema político vigente se torna dia-a-dia mais nítida.

 

A oportunidade

 

Nem todos os erros podem ser emendados, nem todas as injustiças podem ser remidas. Porém, por todo o mundo e com poucas exceções, a política que nos trouxe até aqui está posta em causa. As dívidas dos países impedem-nos de continuar a endividar-se para manter de pé políticas sem sustentabilidade económica.

 

A verdade é que, desde 1974, a classe política conseguiu facilmente convencer os cidadãos de que essa fugidia pedra filosofal[3] tinha sido finalmente encontrada. Pagando-se os impostos adequados — de preferência sendo o vizinho a pagá-los — o cidadão teria todas as necessidades satisfeitas graças à generosidade das grandes estruturas do Estado. A poupança torna-se desnecessária e até perniciosa. Não havendo poupança também não faz sentido falar em direito de propriedade. O que interessa são os novos “direitos”, como o direito ao emprego que melhor se chamaria direito ao salário, e os famosos “direitos adquiridos”.

 

Todavia, agora acabou-se o dinheiro dos outros que haveria de pagar esses “direitos”. A última tentativa para sustentar o que é insustentável é o aumento de impostos numa situação em que a fiscalidade já ultrapassou o nível do sustentável. Uma medida desesperada que apenas vai resultar em mais destruição da economia.

 

O mercado de arrendamento foi destruído em 1974 como o mostram os números seguintes:

·        em 1973, 50,3% dos fogos concluídos destinavam-se ao arrendamento; ainda em 1974, 52,6% destinavam-se ao arrendamento. Em 1990, somente 1,6% era destinado ao arrendamento.[4]

 

Foi destruído pela força bruta do poder mas não foi destruído o seu valor económico, o seu potencial continua vivo.

 

Não haverá recuperação económica enquanto os mais empreendedores e os mais prudentes forem tratados como erva daninha. Não haverá recuperação económica enquanto o cidadão que trabalha, poupa, investe e cria riqueza, não puder guardar para si o fruto do seu trabalho, da sua inteligência e do risco assumido. Não haverá recuperação económica enquanto não existir um mercado imobiliário livre que permita a mobilidade da mão-de-obra e seja flexível em termos de preços, subindo e descendo conforme a riqueza nacional.

 

Na política, como em tudo, são as ideias a lanterna que alumia duas vezes. Sendo os mais perseguidos são também os proprietários urbanos aqueles que melhor podem servir de modelo ao que não deverá ser uma sociedade que se auto-destrói a pretexto de uma ideologia. Por ironia, perante a falência evidente dessa ideologia e tentando salvar o que lhes resta, são os mesmos do costume que nos vêm falar no empreendedorismo e na economia de mercado.

 

Àqueles que se entusiasmem com a magia desta ideia de mercado, perguntarão os proprietários se isso existe sem que o agente tenha o direito de propriedade sobre os bens que transaciona. Perguntarão se o empreendedor tem o direito de guardar para si os frutos da sua visão e do seu trabalho e das noites em claro? Porque nisto que se resume o direito de propriedade.

 

FIM

  

 



[1] No original, em Latim “Ignoranti, quem portum petat, nullus suus ventus est que se traduz à letra “para aqueles que não sabem para que porto vão, nenhum vento é favorável”. Séneca, dramaturgo, filósofo e político romano (5 AC a 65 DC).

 

[3] Pedra filosofal era o nome dado a um material mítico que transformaria qualquer metal em ouro. Tal como muitos economistas modernos, os alquimistas medievais procuravam a pedra filosofal, isto é, a fonte da riqueza sem trabalho. Os alquimistas nunca a encontraram; quanto aos economistas, esses pensam tê-la encontrado.

 

[4] Ver AECOPS na revista Indústria da Construção, nº 144 (Outubro de 1994).

 

  
 
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