Artur Soares Alves 27-Out-2011
Aquilo a que poderemos chamar o excesso de construção é um assunto que já foi tratado várias vezes neste site. Curiosamente é um assunto ao qual se dá pouca relevância, apesar de representar um contributo para a ruína do País. Compreende-se a relutância em trazer o assunto ao grande público na medida em que este excesso resultou de uma política. Esta política, por sua vez, resultou de uma convergência de interesses. E estes interesses procuram hoje proteger-se dos prejuízos, melhor ainda, para usar uma frase feita, procuram socializar os prejuízos depois de terem privatizado os lucros.
Nada disto é uma questão especificamente portuguesa, nem se trata aqui do exercício da crítica dos governantes anteriores ou actuais. Às expectativas de bem-estar económico por parte do eleitorado responderam os governos com políticas sem alicerces firmes, das quais a dívida pública é apenas um aspecto. Por todo o mundo (com algumas excepções) o negócio imobiliário fez parte desta resposta por ser aquele que melhor se adaptou às circunstâncias. Noutras épocas poderia ter sido a expansão colonial ou a guerra.
Pensando no futuro o que importa é compreender que a construção de imóveis que não vão ter uso é um desperdício de capital. Como o capital não é infinito, o que foi investido no imobiliário para construir edifícios destinados à subutilização foi desviado de outros sectores da economia, nomeadamente a produção de bens transaccionáveis[i]. Para esta realidade não há fuga e quanto mais depressa ela for medida e encarada, mais depressa podemos iniciar o percurso de regresso a uma economia assente em princípios sadios. Decerto será uma economia com menos sinais de riqueza material do que no presente, mas não tem necessariamente que ser uma economia de pobreza. É inevitavelmente o nosso destino, resta saber se lá chegaremos por caminhos direitos ou por ínvios caminhos de cabras.
Excesso de habitação
O Instituto Nacional de Estatística procedeu ao Censo de 2011 e encontrou 5.879.845 alojamentos para 4.079.577 famílias; aqui. Isto é, há um excedente de 1 milhão e 800 mil alojamentos sobre o número de famílias. Este é um resultado nacional. Porém, isto não significa que se tenha construído um excesso 1.800.000 alojamentos que agora não encontram comprador. Para começar temos que descontar as residências secundárias. Nos últimos 20 anos foram construídas muitas casas de férias, principalmente junto às praias. É um aparente sinal de prosperidade cujo significado económico seria objecto interessante de estudo.
A seguir temos a considerar as habitações cuja localização geográfica lhes retira qualquer valor. São frequentemente casas situadas em vilas ou cidades do interior que estão num processo de desertificação e sempre que os residentes de uma habitação deixam de lhe dar uso não existe ninguém que venha habitá-la. Contudo, não é somente pela desertificação que essas habitações ficam vagas; possivelmente o seu estado torna desinteressante a reabilitação. Trata-se de bens de capital cujo uso chegou ao fim.
Considerámos Idanha-a-Nova por ser um concelho onde existem poucas residências secundárias que venham contaminar o raciocínio. Para 4.455 famílias existem 11.890 alojamentos, o que dá 7.435 alojamentos vagos, ou seja 63% do total. Os mesmos cálculos para o distrito de Castelo Branco dão 44% dos alojamentos vagos.
Considerámos Lisboa e o seu distrito. Os números são:
Um ponto comum muito curioso entre Idanha e Lisboa é a igualdade da dimensão média familiar de 2,2 nos dois casos. O que indicia a existência muitas habitações com um único residente. Outra coincidência interessante é a quase igualdade em percentagem dos alojamentos vagos em Lisboa-cidade e em todo o Distrito. A explicação será a habitação secundária nas praias da costa Oeste do Distrito.
Que nos dizem estes números em termos de excesso de construção em Lisboa? Não muito, nem sequer quanto ao potencial crescimento da população ou ao mercado para habitação nova. A muitas destas questões poderá responder o Ministério das Finanças cujo cadastro, no tocante a edifícios, é decerto mais rigoroso do que o trabalho de campo dos recenseadores.
Perspectivas
Seja qual for o exacto significado dos números acima, há todavia outros aspectos aos quais dificilmente se escapará. Em artigo anterior dissemos que se Portugal quiser tirar o pé da lama os salários, expressos em moeda forte vão ter que baixar para se harmonizarem à produtividade da mão-de-obra. Indo nesse sentido, entre este ano e o próximo Orçamento, um técnico superior da Função Pública já perdeu a título permanente em torno de 20% do seu salário.
Esta baixa de salário é um sinal para a baixa dos salários no sector privado ou para as pessoas aceitarem trabalhar por menos dinheiro. Neste sentido, por muito que custe aos visados e por muito que estes se sintam enganados, vai no sentido da recuperação económica. Porém, para uma economia baseada no imobiliário e no consumo o resultado pode ser dramático. As famílias não adquiriram somente o espaço de que necessitavam, no momento da decisão compraram a contar com o futuro, contando com a subida dos ordenados e com subida (ainda maior) dos preços do imobiliário. E, por causa da dissuasão à poupança, não existe folga nas famílias para suportar perdas de rendimento.
As famílias mais estruturadas e com meios financeiros compraram casas a crédito para os filhos, numa lógica de dote. Mas isso pressupunha um emprego logo que o curso terminasse mesmo sendo as prestações asseguradas pelo rendimento familiar, de profissionais em fim de carreira ou reformados. Como é que isto vai combinar-se com a perda súbita de rendimento e o aumento de impostos, logo veremos.
A existência de um excesso de alojamentos poderia levar à baixa de preços de compra do existente se o mercado não fosse tão segmentado, em termos de localização e em termos sociais. Porém, o mercado imobiliário é como é — imóvel. Curiosamente o único factor que lhe dá mobilidade é o arrendamento. O arrendamento é o que pode melhor responder à exigência da flexibilização e da incerteza que dominam a fase de reajustamento da economia. Se o Governo quiser poderá criar-se um nível de oferta que torna as rendas muito acessíveis, deixando toda a gente contente incluindo o fisco.
Mas não contemos com isso. Os sistemas económicos, sobretudo os que se estabelecem contra a racionalidade económica e o senso comum, têm uma rigidez interna que dificulta o ajustamento a novas condições. Mais depressa o sistema se quebra do que se reajusta. [i] Podemos dizer que toda gente fala hoje em bens transaccionáveis como o grande problema da economia nacional. O que ninguém explica é que bens transaccionáveis vamos produzir a preços competitivos, com o nível de mão-de-obra que temos, formada nas melhores discotecas da Europa… Indo ao fundo da questão, a crise económica actual é acima de tudo uma crise moral provocada por um ambiente de bem-estar material sem fundamento. |