Política da Habitação Própria contra o Arrendamento

 

Artur Soares Alves

8-Set-2011

 

 

O congelamento das rendas urbanas é um fenómeno estranho e incompreensível para a grande maioria das pessoas. De facto, pesem as muitas queixas em relação ao País, não vivemos sob um desses regimes criminosos como o nacional-socialismo, o Zimbabué ou a Coreia do Norte. Os nossos direitos no dia-a-dia são razoavelmente respeitados e os abusos dos agentes do Estado são razoavelmente limitados. Assim, como se pode compreender que o Estado pegue na propriedade que um cidadão adquiriu legitimamente e entregue o usufruto a outro cidadão que nada fez a favor dessa mesma propriedade? Que o Estado retire muitas vezes ao pobre para dar ao rico, tudo dependendo dos acasos de quem sejam o inquilino ou o senhorio?

 

Passaram 36 anos sobre a última vez que o Estado praticou uma violência dessa natureza, não mostrando até hoje qualquer vontade real de a corrigir. Recusa-se altaneiramente a reconhecer o acto enquanto tal, e tudo isto se passa sob uma Constituição que afirma: “A todos é garantido o direito à propriedade privada e à sua transmissão em vida ou por morte, nos termos da Constituição.” [Artigo 62º]

 

Desta política resultaram efeitos nocivos que hoje são bem visíveis e contribuíram decisivamente para a crise económica que vivemos. Vejamos em síntese alguns deles porque o objectivo deste artigo é responder a uma outra questão:

 

·   Foi o congelamento das rendas que levou à política de construção até ao excesso actual; ou, pelo contrário foram os interesses na construção e venda de apartamentos que mantiveram em vigor o congelamento das rendas?

 

No entender do autor é a segunda hipótese que melhor corresponde aos factos. Os argumentos virão mais adiante, assim como a importância no esclarecimento desta questão. Por ora vejamos os aspectos nocivos de se ter forçado os Portugueses a comprar a sua habitação.

 

Consequências da habitação própria

 

A fixação da mão-de-obra ao local onde adquiriu a habitação parece ser a mais grave consequência desta política. Prejudicando a mobilidade do trabalho contribui para o desemprego. O economista inglês Andrew Oswald conclui num seu estudo: “Um aumento de 10% na habitação própria está associado com um acréscimo aproximado de 2% na taxa de desemprego.[1]

 

Lisboa esvazia-se da população enquanto os prédios com rendas congeladas se vão degradando. Em 1981 Lisboa tinha 808 mil habitantes, em 2001 tinha 565 mil; uma perda de 30% em 20 anos apesar das urbanizações novas como Telheiras, a zona do Lumiar e a Expo. Mas não é somente uma perda quantitativa, é também o envelhecimento e empobrecimento da população, e a percentagem importante de habitação social. A população activa vai viver para os arredores e paga esta política com o sacrifício do movimento diário[2].

 

Durante quase 30 anos as necessidades de habitação foram satisfeitas pela compra. As taxas bancárias foram sempre baixas, próximas das prime-rateso que significava claramente que o empréstimo à compra de habitação era considerado um empréstimo sem risco. Isso fazia sentido porque a casa servia de garantia ao pagamento das prestações e, estando o preço da habitação em subida, se o banco executasse a hipoteca encontraria facilmente um comprador. Visto assim o risco era zero. Esta não é a situação actual e a compra de habitação é o principal factor de endividamento das famílias. Um pequeno sobressalto no rendimento impossibilita o pagamento.

 

Política de construção

 

Tudo começa após 1975 com uma situação completamente rígida em que não há habitação em quantidade suficiente para necessidades crescentes. Com a lei Portas tinha-se aberto o caminho à espoliação das últimas casas vazias, os inquilinos não mudavam de casa, ninguém investia um tostão no arrendamento. O caos instalado no País ia degradando a situação económica e os governos, temerosos da rua e presos da ideologia, nem pensavam em descongelar as rendas.

 

A aquisição de habitação aparece, na primeira fase, como um expediente para resolver o problema da habitação. Uma questão pouco conhecida respeitante a esta época são as taxas de juro talvez excessivamente baixas praticadas pelos bancos (todos do Estado) tendo em conta a inflação elevada. Em todo o caso firma-se uma nova cultura em que a casa própria é a solução mais adequada para as famílias, excepto aquelas para quem o Estado vai oferecer habitação nos bairros sociais.

 

À medida que a inflação ia sendo controlada, as taxas de juro iam caindo cada vez mais e os preços de venda (e o valor nominal das casas) iam aumentando. Todo o parque imobiliário aumentou em valor contabilístico dando uma falsa sensação de riqueza colectiva sustentada pelo imobiliário. E sobretudo a ideia de que o imobiliário era um investimento seguro e cujo valor aumentava diariamente.

 

A construção de novos bairros leva ao alargamento da área urbana. Novas urbanizações, novas redes de esgotos e de distribuição de água são tantas oportunidades para empresas que, por vezes, trabalham em exclusivo para os municípios. Prédios novos são receitas para os municípios, em licenças para construção. Estas novas construções geram numerosos impostos: IVA, IMT e IMI, seja com os nomes actuais ou antigos. Segundo o Eng. Fernando Santo, antigo bastonário da Ordem,

 

Em 2008, a receita do IMI (…) atingiu 1.800 milhões de euros e em 28 municípios representa entre 30 a 40% do total das receitas anuais.

 

Na realidade, o imobiliário foi um processo que permitiu lucros extraordinários e deu emprego a uma mão-de-obra sem formação. O Estado tudo fez para que os preços se mantivessem elevados, inclusivamente com a construção de redes viárias em torno das cidades e o subsídio aos transportes suburbanos.

 

Política deliberada

 

A máquina económica baseada no imobiliário ganhou inércia suficiente para esmagar qualquer oposição e uma consequência foi a continuação do congelamento das rendas completado com uma fiscalidade insustentável e um discurso hostil. Se o arrendamento se normalizasse, digamos, a partir de 1990 isso teria tido um efeito moderador nos preços de venda, devido à oferta de dezenas de milhares de fogos que seriam postos no mercado de arrendamento. Mas esse abrandamento na procura e a moderação nos preços iam contra uma vasta convergência de interesses na construção de habitação nova.

 

Se tivesse havido um mínimo de confiança e houvesse um mínimo de decência em matéria fiscal, contas rápidas mostram que a reposição no arrendamento de casas, até aí com rendas congeladas se teria efectuado com vantagem para proprietários e arrendatários[3]. Em contrapartida, a construção nova trouxe um clima de euforia e parecia que o el dorado afinal se tinha encontrado, e com pouco esforço.

 

Toda uma geração foi obrigada a comprar habitação, o que somente foi possível mantendo um clima político que afastasse a oferta da opção arrendamento. É assim que se compreende o título incendiário do jornal Expresso, em 11-Set-2004, quando se discutia o descongelamento das rendas. Já com dificuldade em escoar toda a produção podemos imaginar o calafrio que passou pelos promotores diante da perspectiva de algumas dezenas de milhar de fogos postos no mercado de arrendamento devido à confiança criada pela nova lei.

 

 

 

Vejamos o argumento mais revelador de que a promoção e a construção de habitação nova, e dos locais de comércio que a servem, ganhou uma dinâmica própria que se desligou da satisfação das necessidades. O Censo de 2011 revela que existem 1 milhão e 800 mil alojamentos acima do número de famílias[4]. Mesmo descontando as habitações secundárias e os locais sem procura, ainda há um excedente significativo.

 

Suponhamos por um momento que a política de habitação própria se desenvolveu unicamente devido à manutenção do congelamento das rendas. Como esta política criou uma procura, os promotores responderam com o desenvolvimento de projectos para preencher esta falta. Mas isso não explica um tal excesso de construção. Este excesso só se explica porque a actividade imobiliária recebeu incentivos específicos, como as taxas de juros baixas. Ora, o crédito barato indica ao investidor que há um nível elevado de poupança disponível para, no futuro, adquirir o produto da actividade imobiliária.

 

Em Portugal, como noutros países, a promoção imobiliária não trabalhou para a satisfação das necessidades mas sim para criar um produto material cujo valor é unicamente contabilístico.

 

A importância destas questões

 

O assunto que estamos a tratar neste artigo resume-se, afinal, à eterna questão da prioridade do ovo ou da galinha. Porém, nem por isso é pouco importante. Quando um movimento pretende influenciar a política e a sociedade precisa de cuidar das alianças com outros movimentos ou interesses. Não parece que a promoção imobiliária e mais alguns sectores a jusante desta tenham grandes afinidades com os proprietários urbanos, pesem embora as declarações envergonhadas sobre a necessidade de desenvolver o arrendamento para promover a “reabilitação”.

 

É preciso cuidado com aqueles amigos que são como os Ingleses que desembarcaram em Peniche, no ano longínquo de 1589, os que ficaram conhecidos por amigos de Peniche...

 

Dois segredos

 

Estas políticas que vão contra a economia livre acabam por ter consequências e, no caso vertente, elas já se fazem sentir. E agora o leitor vai ser informado de duas previsões secretas, mas apenas se jurar não contar a ninguém porque se trata de cousa susceptível de nos levar à inquisição.

 

O primeiro segredo é o seguinte: se Portugal quiser tirar o pé da lama os salários, expressos em moeda forte, como o euro, vão ter que baixar para se harmonizarem à produtividade da mão-de-obra. Isso pode ser feito de várias maneiras: baixa efectiva, saída do euro, desvalorização da moeda, inflação. É previsível que se faça de maneira caótica sob a pressão das circunstâncias. Um alamiré já foi dado pelo corte nos salários da função pública.

 

Os empréstimos que foram estabelecidos em tempo de salários proporcionalmente altos, endividando as famílias até ao limite, dificilmente serão pagos em termos de moeda forte. Consequentemente, os bancos terão dificuldade em pagar os empréstimos que obtiveram no estrangeiro para financiarem os prósperos negócios imobiliários.

 

Mas há outro segredo e este é animador. O dinheiro que financia o imobiliário não provém de poupança interna, nem provém totalmente de poupança externa. Este dinheiro é virtual em grande parte, resultando de operações hábeis dos bancos centrais. Daí que a gravidade da situação seja atenuada no caso em que haja uma quebra maciça no pagamento dos empréstimos à aquisição de habitação. Não será riqueza real o que se perde, o que permitirá ao sistema reajustar-se sem tragédias de monta.

 

Quanto mais depressa deixássemos de viver em ilusão monetária e quanto mais depressa se estabelecesse a liberdade económica, menor seria a dor do reajustamento. Porém, isso está na mão de Deus.

  



[1] Ver: A. Oswald — A Conjecture on the Explanation for High Unemployment

in the Industrialized Nations: Part I,  http://www2.warwick.ac.uk/fac/soc/economics/staff/academic/oswald/unempap.pdf. Ver também: o prémio Nobel Paul Krugman, Home Not-So-Sweet Home, http://www.nytimes.com/2008/06/23/opinion/23krugman.html.

[2] Ver o estudo do economista Ernesto Rosa: http://www.mainly-economics.com/docs/AGRAVAMENTO_DAS_ASSIMETRIAS.pdf

[3] O cálculo é simples. Partindo do valor de restauro de 350 euros por m2, um apartamento de 60 m2 custa 21.000 € a restaurar. Arrendado por 300 € dá uma rendibilidade de 17%. Um banco poderia emprestar para as obras a 7% e com toda a segurança. Isto sob o pressuposto de equidade fiscal.

 

  
 
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