Excesso de Construção e Desperdício de Capital

 

Artur Soares Alves

16-Jun-2001

 

 

Há dois factores que determinam a produtividade de uma empresa: (1) os bens de capital, como as máquinas; (2) a instrução da mão-de-obra, o chamado capital humano. As máquinas, desde o machado à fresadora digital, permitem ao trabalhador produzir mais com as mesmas horas de trabalho. A máquina por si-só não garante o aumento da produtividade, sendo determinante o nível de educação — real e não nominal — do trabalhador.

 

O que importa assinalar é que as máquinas são bens de capital, tal como o são os edifícios, camiões, vias de comunicação. Os bens de capital adequados permitem ao trabalho atingir um rendimento elevado, o que se reflecte na sofisticação dos produtos, os preços elevados destes e os salários também elevados. Como o factor que define a produtividade do trabalho é o capital, para que a economia se desenvolva é necessário fazer um uso cuidadoso dos bens de capital de forma a retirar destes maior rendibilidade possível. Tudo isto é do senso comum e é por isso que as máquinas são por vezes utilizadas em regime de 24 horas por dia. É por isso que as máquinas são projectadas de forma a reduzir o seu custo, ninguém se lembraria de fabricar um torno mecânico com manípulos de pau-santo.

 

Porém, o que o senso comum ensina perde-se rapidamente quando a política procura dirigir a economia.

 

Edifícios como capital

 

Edifícios como pavilhões industriais, lojas, escritórios, são bens de capital. A sua existência permite a realização de actividades económicas, produção de bens, comércio ou prestação de serviços. Por bizarro que possa parecer muitos destes serviços não precisam rigorosamente de edifício. Um advogado pode perfeitamente instalar-se na rua com duas cadeiras e esperar pelos clientes que comprem o seu saber. O que acontece é que dentro do escritório o seu trabalho se torna mais eficiente, a ponto de pagar facilmente a renda do local e ter lucros superiores aos que teria trabalhando na rua.

 

 

 

Barbeiro trabalhando na rua, na China de hoje. Ver mais [1].

 

 

Pela mesma ordem de razões os pavilhões industriais têm melhorado as suas condições de conforto, desde o tempo em que eram simples telheiros até aos locais com ar condicionado. O conforto das condições de trabalho reflecte-se na produtividade do trabalhador.

 

No que toca ao imobiliário o empreendedor é o promotor. É este que, observando a economia, se apercebe das oportunidades futuras e organiza o longo processo de construção de um edifício destinado a entrar no mercado para satisfazer necessidades que o promotor antevê. Neste contexto quando observamos a existência de edifícios de escritórios vazios concluímos que o respectivo promotor se enganou nas suas previsões, com isso causou prejuízo aos investidores e criou uma dívida bancária que não pode pagar. Porém, por detrás destes prejuízos há um outro factor ainda mais grave: a construção do tal edifício é a produção de um bem de capital que não é usado, logo, ocorre um desperdício de capital. Supondo que a construção deste bem de capital se faz a partir das poupanças dos cidadãos anónimos, é evidente que estas poupanças poderiam ter sido orientadas para outro fim mais produtivo do que um edifício de escritórios vazio.

 

As famílias como unidades económicas também dispõem de bens de capital, sendo os mais caros a habitação e o automóvel. Há evidentemente aqui um sofisma porque a habitação é comprada a crédito e apenas uma parte é capital próprio da família; e com o automóvel ocorre a mesma coisa.

 

Bens transaccionáveis

 

Os bens e serviços transaccionáveis são aqueles que têm potencial para serem exportados ou importados. Ou são bens que podem substituir as importações. Certos bens são não-transaccionáveis, seja porque são imóveis, seja porque o seu transporte tem custos proibitivos. Muitos serviços também são não-transaccionáveis, como é o caso particular da saúde.

 

Um país que não produza bens transaccionáveis em quantidade suficiente para trocar com outros países e pretende assegurar um nível de bem-estar acima da sua produção, só pode fazê-lo endividando-se. Hoje esta é uma verdade inegável, ainda ontem dizer isto era sujeitar-se ao ostracismo.

 

Imobiliário

 

Por todo o mundo o imobiliário apareceu a muitos governos como uma forma de criar prosperidade sem esforço. Em Portugal, o regime das rendas congeladas afastou qualquer investimento no arrendamento a partir de 1974. Devido à insegurança económica e a factores demográficos, existiu excesso de procura de habitação durante uma década. Em vez de libertar o mercado, dando oportunidades iguais à compra e ao arrendamento, o governo e a opinião pública voltaram-se para uma política baseada unicamente na compra.

 

Porém, como as famílias não tinham poupanças suficientes o sistema de compra só seria sustentável através de crédito. À medida que a inflação ia sendo controlada e o escudo estabilizava as taxas de juro iam baixando e o crédito era cada vez mais fácil. A redução das taxas de juro permite aumentar o preço das casas porque o comprador baseia a sua decisão no preço que tem que pagar (a prestação mensal) e não em termos do valor do investimento. Neste contexto as casas sobem de preço a um ritmo superior à inflação e a compra de imóveis para revender ou como forma de corporização do dinheiro aparece como um negócio seguro e lucrativo. O endividamento das famílias para a compra de habitação própria parece ser uma atitude da maior racionalidade pois que os preços estarão  sempre a subir… As famílias têm incentivo em adquirir mais espaço do que necessitam pois que se pensa que no futuro os preços serão ainda mais elevados. A actividade de promoção e construção oferece lucros elevados e seguros, o que poderia parecer estranho porque não exige a sofisticação e a inovação da produção industrial, muito menos a das actividades financeiras.

 

Em termos fiscais o imobiliário proporciona receitas elevadas, sobretudo para os municípios.

 

A habitação fomenta a economia, a montante a jusante. A montante, os fabricantes das matérias-primas (o tijolo, o aço, o betão, a tubagem), a jusante a decoração de interiores. O imobiliário proporciona emprego a uma mão-de-obra pouco instruída, o trabalho na construção civil é duro mas bem remunerado. Tudo isto parece ser a base para um milagre económico.

 

Em termos contabilísticos a riqueza nacional não cessou de aumentar. Para assegurar a coerência e o funcionamento deste sector da economia e manter os preços elevados, o arrendamento foi liquidado quanto mais não seja pela via da iniquidade fiscal.

 

Excesso de imobiliário ou desperdício de capital

 

Nenhum acto humano acontece livre de consequências. Uma casa é um bem de capital e quando uma casa fica vazia há desperdício de capital, e o desperdício é o caminho da pobreza. No imobiliário é inevitável este desperdício por vários factores, o mais importante sendo o movimento da população para as cidades que leva a abandonar a casa da aldeia.

 

Todavia, sendo inevitável não deveria ser fomentado pela intervenção estatal. Muitas casas vazias poderiam ter sido restauradas e colocadas de novo no mercado, se não fosse a política de favorecimento da construção nova para venda e as complexas ramificações desta política.

 

Esta política trouxe consigo uma outra consequência perversa e, vamos lá, com alguma justiça poética — hoje há um excesso de habitação nova para venda. A oferta do imobiliário ultrapassa a procura e muita construção nova não se vende nem se venderá. É um claro desperdício de capital fomentado pela política. Isto significa que muitos promotores foram vítimas do próprio sucesso e expandiram o seu negócio muito para além das necessidades do mercado.

 

 

Segundo uma avaliação, um milhão de casas está à venda, novas ou usadas. Juntemos a esta quantidade as casas que poderiam ser habitadas com um restauro sumário e ficamos com uma ideia do desperdício de capital que se abateu sobre a economia nacional. Ora este desperdício não resultou do desleixo dos actores económicos mas sim da falsa informação proporcionada pela acção do Estado e dos bancos centrais. A raiz do problema está no crédito artificialmente baixo, que sem sequer é o resultado da poupança mas sim da “gestão” do dinheiro.

 

O problema

 

Neste ponto regressa-se aos bens transaccionáveis. Enquanto os Portugueses construíam casas, lojas e escritórios para vender, uns aos outros, os bens de consumo eram importados para manter o nível de vida que se espera que o Governo assegure. O capital que poderia ter sido usado para a produção de bens transaccionáveis foi esgotado no investimento imobiliário. O resultado é a dívida nacional, pública ou privada, o problema número um do nosso tempo.

 

Compreende-se como o imobiliário foi um expediente momentâneo para um país cuja escola desistiu há muito da formação do capital humano necessário à produção de bens transaccionáveis, para um mercado mundial onde a concorrência é temível. O que acontece quando a acção voluntariosa da política ofende as leis naturais do comportamento humano é que a economia “vinga-se” gerando pobreza.

 

Mas se mal de muitos é remédio, notícias sobre o mercado imobiliário espanhol[2] e as suas  cidades fantasma não deixarão de nos trazer consolo.

 



[1] Sobre as actividades e os serviços prestados na rua, na China de hoje, ver http://www.newgeography.com/content/002278-the-streets-chengdu-a-photo-essay

[2] Sobre o imobiliário desperdiçado em Espanha ver o New York Times (18-Dez-2010): http://www.nytimes.com/2010/12/18/world/europe/18spain.html e mais recentemente o assunto foi retomado nos mesmos termos: http://www.theglobaljournal.net/article/view/33/. Não somente se construíram inutilmente casas e lojas, mas também infra-estruturas de acesso. O  Público traz uma notícia semelhante respeitante à Irlanda:http://www.publico.pt/Mundo/reliquias-do-tigre-celta_1498468.

 

  
 
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