Ilusões Financeiras e Fiscais

 

Artur Soares Alves

8-Mar-2012

 

 

Depois de um conjunto de políticas económicas que levaram o País à ruina, os Portugueses puserem o seu destino nas mãos das organizações financeiras internacionais, aqui representadas por uma comissão a que toda a gente chama Troika, com um gosto duvidoso. Esta comissão hoje manda em Portugal em tudo o que seja matéria financeira e fiscal. Por muito que isso custe a quem queira ser livre e responsável, este mando está à medida de um País que se deixa viver na ilusão de uma vida fácil paga pelos empréstimos obtidos no exterior.

 

Não foi difícil à Troika inventariar as razões do descalabro financeiro do País, alguns Portugueses já o haviam feito e explicado. Muitos outros também conheciam essas razões mas não tinham meios de o dizer publicamente; ou não queriam sujeitar-se ao enxovalho que é a recompensa habitual para quem ousa pôr as evidências em evidência.

 

Em todo o caso, o problema é simples de compreender: excesso de gastos infrutíferos para agradar a um eleitorado exigente e défice de receitas fiscais. Portanto, do ponto de vista da Troika e do Governo, haverá que cortar nessas despesas infrutíferas e aumentar a receita fiscal. Porém, a receita fiscal já atingiu percentagens do PIB que sufocam a economia e tal como se explicou noutro artigo só resta o património imobiliário para lançar impostos.

 

Ora isto é fonte de uma perigosa ilusão. Ilusão para uns, perigosa para quem vier a sofrer as consequências. O Governo propõe-se rever os valores patrimoniais para, na maioria dos prédios urbanos, determinar o seu VPT (valor patrimonial tributário), aplicando o processo de avaliação previsto no Código do IMI de 2003 (artigo 38º)[i]. Juntando a isso um aumento da taxa do IMI promete-se um crescimento brutal da receita fiscal do património. E enquanto os indivíduos e as empresas podem ganhar menos, vender menos ou comprar menos, baixando o IVA, o IRC e o IRS, já os proprietários estão amarrados à propriedade que não podem alienar sem consequências dramáticas.

 

A perigosa consequência desta avaliação é que ela vai conduzir a valores acima (ou muito acima) dos valores reais dos imóveis. Por valores reaisentendemos os que ocorrem nas vendas, ou aqueles que se podem inferir a partir do arrendamento. Podemos entender por valor real também o valor de mercado, porém, para haver valor de mercado é preciso que haja mercado a funcionar. Isto é, muitas compras e muitas vendas.

 

Todavia, com um VPT superior ao valor de mercado vai acontecer que as vendas serão penalizadas em termos de mais-valias, já para não falar no IMT e nas alcavalas que acompanham as transações. Como se sabe, todos os negócios por valores inferiores ao VPT serão considerados como uma tentativa de enganar o Fisco e os impostos e taxas serão calculados tomando o VPT como base. Quer dizer que só venderá quem a tal for forçado porque o mais certo é pagar IRS sobre mais-valias que não realizou.

 

Esta avaliação vai revelar-se um obstáculo às transações.

 

Este VPT a que o Estado se propõe determinar para todos os prédios explica o motivo pelo qual a proposta da ANP de corrigir as rendas congeladas a partir do índice de preços não poderia ter acolhimento. Essa proposta só é válida sob a hipótese de uma fiscalidade razoável, em que os valores matriciais não subam mais depressa do que o índice de preços.

 

Em contrapartida, vejamos o esquema que a correção das rendas congeladas [Proposta de Lei n.º 38-XII, sobre o arrendamento urbano] pretende impor:

 

VPT do prédio

100,00

Renda anual (1/15 do VPT)

6,66

IMI (0,6% do VPT)

-0,60

Rendimento líquido

6,06

IRS (digamos 45%)

-2,73

Rendimento após impostos

3,33

 

Contas feitas sem obras. Uma rendibilidade de 3,33% não se pode considerar brilhante. Há reformas baixas que não permitem pagar essas rendas e isso está previsto. O que haverá também é muitos inquilinos que não quererão pagar os valores que estão previstos na correção das rendas congeladas e sairão para locais mais pequenos e mais baratos. O que vai acontecer é que as casas muito usadas que assim ficam livres não serão arrendadas por 6,66% do seu valor matricial mas por muito menos. Caberá ao proprietário pagar IMI sobre um valor suposto de prédio que ultrapassa o valor real.

 

Isto se tiver sorte e houver alguém que queira ser inquilino desse prédio, alguém que dê as garantias mínimas de pagar a renda. No caso contrário ficará um prédio vazio e sujeito à ameaça de um IMI a triplicar. Se o prédio for uma loja a tragédia está garantida. O fracasso de uma economia que baseava no imobiliário e no consumo de bens importados está bem patente nas montras vazias e sujas das lojas desertas que se seguem umas às outras.   

 

Este fracasso espera-se que caia pesadamente sobre os proprietários urbanos descapitalizados. Quantos irão perder a propriedade confiscada por causa dos impostos que não conseguem pagar? Quem irá depois comprar em hasta pública essa propriedade pelo VPT? Não haverá por aí muitas ilusões?

 

Reabilitações…

 

Em conjunto com a legislação que pretende reformar o arrendamento outra legislação se prepara para “reativar” o imobiliário [Proposta de Lei n.º 24-XII, sobre a reabilitação urbanaProposta de Lei n.º 47-XII, sobre obras em prédios arrendados]. Se estes propósitos se tornarem lei e se a lei for aplicada, o resultado primeiro é a expropriação dos prédios com rendas congeladas e a sua entrega a empresas privadas ou municipais para que façam lucro. E se não fizerem lucro cá estarão os impostos para cobrir os prejuízos ou a má gestão.

 

Tudo isto já está explicado e compreendido, pelo menos desde a legislação que cria as SRU, de 2003. Na verdade, o Governo está a fazer uso do seu direito discricionário de governar como bem entende, sem limites de natureza alguma. Expor o modo como estas leis de reabilitação urbana atacam o direito de propriedade — ou explicar que as sociedades em que o direito natural das gentes é afrontado correm para a desagregação — tudo isso é tempo perdido.

 

Verdadeiramente o que importa é perguntar quem vai comprar ou arrendar esses prédios reabilitados aos preços necessários para que o negócio seja rendível? Será que após se ter o País arruinado com a compra de habitação própria, vão os contribuintes financiar operações imobiliárias onerosas, mesmo que o terreno tenha sido obtido gratuitamente através de violência sobre direitos fundamentais?

 

Os proprietários entendem muito bem o problema da falência das construtoras e o desemprego na construção e nas atividades que lhe estão ligadas. Mas também entendem a forma como suportaram um congelamento de rendas ruinoso e que os impediu de ir a jogo no mercado da habitação e dos locais de comércio. E até, vamos lá, não custa nada a sentir simpatia por empresários habituados a lucros certos e que gostariam de continuar pela mesma senda.

 

Todavia, a economia não se rege por simpatias. O excesso de construção significa que se produziu mais do que o mercado está em condições de absorver. Esta produção só foi possível devido ao incitamento proporcionado pelo crédito fácil e sem proporção com a poupança. Esta via está esgotada e tentar inventar obras de reabilitação para resolver os problemas das empresas em dificuldades só irá agravar a situação económica geral.

 

É isto o que vale a pena evidenciar. Os poderes discricionários do Estado sobre os cidadãos não se estendem à realidade económica.

 

FIM

 

ADENDA

 

O Público de hoje [10-Mar-2012] traz uma notícia sobre a falta de poupança dos Portugueses, salientando que:

·         quase 90% da poupança das famílias portuguesas a ser feita por apenas 20% dos agregados familiares”

·         “poupança feita no país, cuja taxa de poupança caiu de quase 24% do rendimento disponível, em 1985, para 10%, no final dos anos 90. Desde então tem estado estável, à excepção do período entre 2005 e 2008, no qual baixou para 7%”

·         existem 30% de famílias em Portugal que apresentam uma taxa de poupança negativa, isto é, gastam mais do que aquilo que ganham.

 

Isto é, pouca gente poupa (um quinto das famílias) e poupa-se pouco no global. Parece que só agora se descobriu que isso é mau:

·        “a saída da crise da dívida soberana, que limitou as possibilidades de financiamento externo da economia portuguesa, ameaçando estrangulá-la, terá de passar pela recuperação da importância da poupança no discurso e na prática dos portugueses”.

 

Com a ação contra a poupança que foi o mote da política portuguesa até recentemente — até com propostas para a reintrodução do imposto sucessório — o que admira é haja tanta gente a poupar. O leitor também poderá ler aqui sobre este assunto.

 



[i] Seja para glória futura, ou não, convirá relembrar a quem se deve este diploma legal: Dra. Manuela Ferreira Leite, Ministra de Estado e das Finanças. Convirá nunca esquecer o que parecem notas de rodapé da História porque, quando ouvimos antigos governantes a criticar a situação presente, parece sempre que eles não tiveram nada a ver com os factos que nos conduziram até aqui.

 

  
 
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