Sobre a Proposta de Lei do Arrendamento
Direção da ANP 19-Jan-2012
Nota. Enquanto se estuda e procura compreender o que oferece a Proposta de Lei 38/XII, a Direção da ANP publica desde já algumas considerações gerais assim como o método que está a utilizar para a análise em detalhe dos diferentes artigos da Proposta. Numa primeira leitura é fácil de inferir que o que se propõe é complexo e somente nalgumas situações particulares vai permitir corrigir abusos permitidos pela lei em vigor. Todavia, existem aspectos claramente positivos na Proposta e existem pequenos progressos em relação à Lei 6/2006 (NRAU).
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A Proposta de Lei 38/XII merece uma referência particular à forma como se apresenta na exposição de motivos. Destaca-se esta pela forma positiva como enuncia os objectivos da lei, sem o tipo de retórica anti-senhorio que se encontra na exposição de motivos da Lei 6/2006, nas declarações de titulares de cargos políticos ou de pessoas de consequência no domínio da política.
É uma infelicidade ter que registar este simples fato — uma lei que não se afirma como um acto hostil contra uma parte do País, os proprietários, precisamente uma parte que é ordeira e cumpridora das leis. Terá sido por necessidade económica ou por evolução das ideias, ou mais provavelmente pela interação entre os dois factores? Por ora, a questão é irrelevante. O que conta é que o Estado se dispõe a publicar legislação que possa responder a necessidades da população que têm vindo a agravar-se.
No entanto, até como lição histórica ficará registado que aos proprietários urbanos — durante muitas décadas — foi negada a igualdade perante a lei que todos os cidadãos têm o direito de esperar por parte do Estado republicano. Mais grave do que isso: o discurso político e o discurso mediático dominantes iam no sentido da desumanização do proprietário. É trágico constatar que foi preciso que o País chegasse à beira da catástrofe financeira e foi precisa a intervenção de uma entidade internacional para que surgisse este projecto de lei. Dito isto, se não se é inútil viver no passado nem por isso este desaparece.
O Governo propõe uma lei que pretende trazer o mercado de arrendamento para a posição económica que lhe compete num contexto de racionalidade. Independentemente dos factos e das opiniões que aqui se exponham, ou das análises que não têm faltado, será a realidade do dia-a-dia que vai dar o veredito final sobre a lei que vier a ser aprovada. Dois anos não será tempo demasiado para formular um juízo sobre a sua eficácia. E não se ignora que esta lei, mais do que qualquer outra, irá ser sujeita a todo o tipo de ataques visando torná-la ineficaz ou satisfazer interesses ilegítimos.
Se a aprovação da lei contemplar uma correção realista e convincente das rendas congeladas é natural que nos defrontemos com pessoas em situação difícil devido à subida da renda. A ANP não pode naturalmente falar em nome pessoal de cada proprietário, mas pode enunciar como princípio geral que ninguém deve ficar sem tecto devido à aplicação da lei. É certo que muitas situações negativas se deverão à imprudência e ao consumismo dos próprios inquilinos, incitados mesmo pela pequenez da renda. Porém, tratando-se frequentemente de pessoas com idade avançada é impossível corrigir os seus hábitos e as suas ideias.
Por outro lado há que entender a psicologia do proprietário causticado pela injustiça da situação em vigor durante tantos anos e muitas vezes confrontado com a arrogância e o consumismo exibicionista do inquilino. Não se pode esperar que estes sentimentos de desconfiança desapareçam de um dia para o outro. Porém, pode ter-se por certo que se as relações contratuais entre inquilinos e senhorios forem reequilibradas prevalecerá o princípio da convergência de interesses e logo se encontram as soluções mais adequadas às duas partes. Não há dois prédios iguais, não há dois contratos iguais.
Qualquer lei que pretenda efectivamente promover o mercado de arrendamento terá que tratar de quatro assuntos, a saber, § a liberdade contratual, § a garantia do cumprimento dos contratos, § a correcção das rendas congeladas, e § a fiscalidade.
Sem dar soluções equitativas a estas quatro matérias nenhuma lei alcançará esse desiderato. Examinaremos a proposta de lei segundo os três primeiros aspectos.
Liberdade contratual
A liberdade contratual é o único meio pelo qual se dá resposta adequada às necessidades e à oferta, tanto em locais habitacionais, como não-habitacionais. A situação extrema que esteve vigente até 1991 (e até 1995) dava ao inquilino a opção de manter o contrato enquanto lhe conviesse. Uma vez arrendado o local este, por via de regra, considerava-se perdido. Nestas circunstâncias o proprietário estava inibido de arrendar numa perspectiva de curto ou médio prazo, pois que não poderia nunca mais dispor do que lhe pertencia, mas apenas nominalmente. Havendo ainda hoje contratos com 90 anos que ainda estão em vigor, podemos avaliar o absurdo desta situação.
Compreende-se contudo que o Estado imponha algumas regras muito gerais e até algumas regras que visem impedir o abuso de uma parte em relação à outra. Essas regras cumprem também o objectivo de dar indicações sobre quais as situações típicas. Numa economia livre o mercado de arrendamento é extremamente interclassista e nem todos os participantes (inquilinos ou senhorios) possuem a informação necessária para estabelecer a sua estratégia do negócio.
Em todo o caso, é essencial a estabilidade das leis, o que é válido em geral mas especialmente importante em negócios que envolvam contratos a longo prazo.
Cumprimento dos contratos
É inegavelmente uma função do Estado assegurar o cumprimento de contratos livremente estabelecidos entre particulares, ou declarar a nulidade daqueles em que alguma parte não fosse livre no acto de assinatura do contrato. Desta função do Estado depende a paz social e a segurança de pessoas e bens. Sabe-se, por experiência histórica, que quando o Estado não assume esta obrigação ela é tomada por organizações que actuam à margem da lei.
O contrato de arrendamento tem algumas características especiais, donde avulta o seu longo prazo. O risco de dívida irrecuperável ou de danos causados ao prédio é também muito grande. Estes riscos, analogamente a qualquer outro negócio, acabam por ser pagos pelos inquilinos cumpridores. Portanto, no interesse da colectividade é importante, pelo menos, reduzir o risco da dívida se ele não puder ser anulado. Com isto vamos à questão do despejo célere que ponha fim ao aumento do prejuízo, uma vez que, as mais das vezes, a dívida já acumulada pode dar-se por perdida.
É claro que a questão dos despejos pode ser delicada e levantar problemas humanos. Toda a legislação anterior se tem baseado no princípio de que o inquilino é a parte fraca do contrato para a qual é precisa uma protecção infinita. O resultado é que quem não oferece garantias firmes de solvabilidade tem muita dificuldade em arrendar ou sujeita-se ao mercado informal onde não há contratos, nem recibos e onde a “justiça” fica por conta do mais forte fisicamente.
Correção das rendas congeladas
Mesmo em muitas páginas é impossível descrever as distorções e os prejuízos causados à economia pelo congelamento de rendas. Aos prejuízos económicos juntam-se os problemas morais, a descrença na seriedade do Estado, o fosso entre o cidadão e o governo. Possivelmente haverá quem pense que há progresso económico sem justiça, porém, tal é uma ilusão que só dura enquanto os cidadãos estão deslumbrados com o crescimento, supostamente milagroso, do consumo.
A vida individual baseia-se num espécie de contrato a longo prazo entre o indivíduo e a comunidade. Se esta não cumprir a sua parte, em particular protegendo os seus direitos, o indivíduo sente-se livre de qualquer dever, podendo retirar da colectividade as vantagens possíveis sem qualquer retribuição. A injustiça no campo da economia cria uma forma perversa de “individualismo”, perversa porque a dignidade, a responsabilidade e o dever do cidadão pleno são substituídos pelo egoísmo do indivíduo a que, somente por caridade, se pode chamar “cidadão”.
O congelamento das rendas trouxe indubitáveis vantagens políticas a quem o introduziu e o manteve. Porém, nem por isso deixou de ser um acto imoral de ataque à virtude a favor do egoísmo citado acima. Se a presente Legislatura puser um termo real a essa injustiça praticará um acto virtuoso. Se o Estado se ativer apenas à retórica sem efeitos práticos, os cidadãos continuarão como até aqui a evitar investir no arrendamento — porque é um mercado que traz uma baixa rendibilidade, conjugada com um enorme risco.
Fiscalidade
Este assunto não é objecto da Proposta de Lei mas, nem por isso, deixa de ter uma importância crucial. Para começo há a considerar o IMI que é um imposto que não tem qualquer proporção com o rendimento do prédio, mas sobre um valor que lhe é atribuído através de uma fórmula com parâmetros numéricos arbitrários. Sobre o rendimento — nem sequer sobre o rendimento líquido — incide o IRS. Cerca de metade, por vezes mais, da renda é passada ao Estado. O conjunto dos impostos é uma quebra de rendibilidade do investimento com dois resultados possíveis: (1) o encarecimento das rendas; (2) o não investimento por falta de rendibilidade.
Os impostos podem ser interessantes quando o Governo não consegue prover a todos os seus compromissos. Contudo, o encarecimento fiscal de bens essenciais como neste caso, eleva artificialmente o preço do bem essencial e pode privar o cidadão de um tecto.
O IMI é calculado sobre uma avaliação dos prédios que a prática mostra ser frequentemente superior ao preço de mercado destes, que é verificado quando há uma transação. Com os rendimentos dos Portugueses a baixar, os preços pagos pela compra ou arrendamento do prédio baixam forçosamente, tal como deveria baixar o seu valor. A fórmula de avaliação do código do IMI foi estabelecida no auge do valor do imobiliário. Passaram já oito anos. Neste momento, o excesso de oferta, a descompressão demográfica, a quebra de rendimentos e o desemprego fazem naturalmente baixar o valor real do imobiliário.
O IMI sofre ainda de um problema estrutural — é um imposto sobre poupanças retiradas de rendimentos que já pagaram imposto. Não é a ocasião de fazer teoria fiscal, nem para tal há competência da nossa parte. Mas não será inoportuno recordar que quando um imposto é aplicado em má ocasião afeta a atividade económica a jusante, opõe obstáculos à criação de riqueza e faz baixar a própria receita fiscal.
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