Reflexões sobre a Lei das Rendas II
João Anastácio 26-Set-2013
Quando em Novembro de 2012 entrou em vigor a Lei 31/2012 que alterou a legislação sobre o arrendamento urbano, foi feito, por parte dos inquilinos, um enorme alarido, com afirmações catastrofistas de que esta Lei iria provocar despejos desumanos, aumentos de renda incomportáveis e especulativos, etc., etc.
Decorreram oito meses durante os quais se continuou a assistir a uma fortíssima campanha de terror anti nova Lei das Rendas, de tal maneira que o Governo entendeu dever criar um organismo específico para acompanhar a evolução da aplicação da nova Lei.
Ao longo dos oito meses entretanto decorridos o que aconteceu efetivamente de concreto?
Quem possuirá a visão de conjunto é, naturalmente, o referido Organismo, mas, tanto quanto sei, nenhuma informação ainda veio a publico com esta origem, embora o referido observatório se encontre a funcionar, tendo já decorrido várias reuniões. Assim sendo, só posso transmitir, sobre o que se tem passado, a minha opinião, tentando extrapolar para o universo do mercado de arrendamento uma experiencia pessoal, complementada pelas informações ao dispor de um observador atento.
Sendo ainda cedo para se chegar a conclusões firmes, até como consequência dos sucessivos atrasos que a aplicação da Lei tem conhecido (adiamento de três meses para a finalização da determinação final do Valor Patrimonial Tributário do parque urbano, atraso para Julho p.p., do inicio da entrega dos Certificados do Rendimento Anual Bruto Corrigido dos inquilinos que decidiram recorrer ao argumento da insuficiência económica), parece-me todavia ser possível avançar desde já com a indicação de algumas tendências.
1 - Arrendamento habitacional
a) Os contratos que abrangem inquilinos que não se encontram em situação de carência económica e em que, portanto, a atualização da renda já pôde ser processada com base em negociações senhorio/inquilino, terminaram na grande maioria dos casos, pela aplicação do valor da renda apontado na Lei como solução supletiva para o caso de não existência de acordo, ou seja, a nova renda mensal é igual ao Valor Patrimonial Tributário dividido por 180. Considerando que o montante da renda assim determinado ainda se encontra, na generalidade, significativamente abaixo do atual valor de mercado, pelo menos em Lisboa e Porto, onde se concentra o mercado nacional de arrendamento, as atualizações concretizadas não têm dado origem a conflitos sérios. Verificaram-se casos de cessação de contratos de arrendamento, com entrega das casas, mas em situações em que os apartamentos já se encontravam desocupados, servindo apenas de armazém de móveis ou de ponto de apoio nas deslocações do inquilino, familiares e outros, que entretanto tinham mudado de morada mas ainda mantinham a anterior, dado o preço irrisório desta.
Verificou-se assim uma aplicação tranquila da nova Lei, que está praticamente terminada, e que permitiu a correção de inúmeros casos anómalos e criou ainda a perspetiva de entrada no mercado de muitas dessas casas. Esta entrada é todavia necessariamente lenta, porque esses fogos são entregues aos proprietários num estado tal de má conservação que exigem, antes que possam ser colocadas no mercado de arrendamento, importantes investimentos na sua recuperação.
b) A grande maioria dos contratos de arrendamento anteriores a 1990 abrange também um universo de inquilinos que se encontram em situação de carência económica, tal como esta é definida na nova Lei ou seja um RABC mensal inferior a 2829 euros. Os Certificados emitidos pela Autoridade Tributária e que definem o RABC do agregado familiar que vive em cada fogo, só começaram a ser emitidos em Julho pelo que, na prática, só a partir do mês de Agosto, os inquilinos foram notificados do valor das rendas futuras e dos retroativos que irão pagar em função do valor do RABC definido oficialmente.
Trata-se de um processo em curso, mas as primeiras reações dos inquilinos parecem indicar que os aumentos reais se situam muito abaixo daquilo que eles antecipavam em função das atoardas e da propaganda despudoradamente alarmista proveniente das habituais cassandras desta área, pelo que são aceites pacificamente, diria até, com certo alívio.
Na realidade e, mais uma vez, as disposições da Lei beneficiam largamente os inquilinos, em detrimento de uma solução que se pretendia equilibrada e isto porque se torna tecnicamente difícil, embora previsto na Lei, incluir no RABC o rendimento de todos os habitantes de um mesmo apartamento pelo que, em muitos casos, o valor do RABC certificado corresponde apenas a uma parte da receita dos usufrutuários da casa. Assim, sabendo-se que os contratos de arrendamento anteriores a 1990 abrangem maioritariamente uma população de reformados e que a pensão média é de €1350, tal significa que a renda a pagar começará por um mínimo de, digamos, €25 (pensão de €250), passando por um valor médio de €230 (17% de €1350), ou seja, a nova renda média corresponderá, no mercado, ao preço não de um apartamento mas de um bom quarto...
2 - Arrendamento comercial
A análise da evolução da atualização das rendas comerciais é muito mais complexa dada a grande diversificação deste tipo de inquilinos. Neste universo encontram-se desde a grande instituição bancária até á pequena loja de bairro, passando pelo arrendamento de escritórios, armazéns, etc. Acresce que a atualização das rendas, agora permitida, veio encontrar uma situação de crise generalizada no comércio, permitindo a especulação de que qualquer aumento de renda seria a causa do encerramento de inúmeras lojas.
A aproximação á realidade do valor das rendas comerciais é normalmente aceite pelas empresas prósperas, escritórios consolidados etc.; o caso das pequenas lojas, abrangendo atividades as mais diversas, carece de uma análise quási caso a caso. Por exemplo, sabendo-se que o sector automóvel atravessa uma grave crise, será correto atribuir o encerramento dos stands á atualização da respetiva renda, encargo menor face ao prejuízo da quebra de vendas? Noutros casos, há lojas que só sobreviveram no passado porque pagavam rendas irrisórias, defraudando a lei da concorrência e enganando-se a elas próprias, convencendo-se de que ganhavam dinheiro com o negócio que desenvolviam, quando na realidade viviam da exploração do senhorio. É natural que qualquer ajustamento no valor da renda, aliado á redução do volume de vendas, as obrigue a fechar mas, convenhamos, trata-se de empresas que viviam de forma artificial e sem perspetivas de futuro.
Se a análise das consequências da aplicação da nova Lei do Arrendamento ainda é prematura no caso dos arrendamentos habitacionais, muito mais o é no caso dos comerciais. Aguardemos.
O Futuro
Todos os comentários atrás feitos, embora se refiram a um processo que está a decorrer, pertencem já ao passado. A nova Lei está em execução e os senhorios mais não podem fazer do que aproveitar a pequena abertura que agora lhes é concedida para corrigirem minimamente o nível absurdamente baixo das rendas que recebiam. Esta correção é porém mais que insuficiente, e só é suportável porque, como reconhecido na própria Lei, se prevê nela, desde logo, uma intervenção do Estado. Essa intervenção, que terá lugar dentro de já menos de cinco anos, fará com que o Estado assuma finalmente as suas funções e se substitua aos senhorios na involuntária ação socio-caritativa que estes desempenham ao não receberem pelas casas que estão arrendadas o valor justo, indispensável para cumprir as suas obrigações de manutenção do locado, pagamento de contribuições, seguros etc. e obtenção de uma justa remuneração ao capital investido.
Conforme declarações oficiais, o Estado não partiu já para o assumir dessa responsabilidade de garantia de habitação aos mais carenciados sem que para tal os senhorios sejam explorados, apenas por impossibilidade de conhecer o encargo que tal apoio acarretaria e não se poder comprometer com o pagamento de montantes imprecisos. O Estado definiu então o prazo de cinco anos para, apoiado nos elementos que a aplicação da atual Lei lhe irá facultar, determinar a verba necessária, a incluir, suponho eu, no Orçamento de 2017 ou 2018 para subvencionar quem não puder pagar uma renda normal para o tipo de fogo que habita. Note-se que a Oposição concorda com esta situação, mas propõe que o prazo para que a mesma se inicie seja alargado para 15 anos...
Face á situação real existente é indispensável que o prazo previsto na Lei atual, só aceitável numa linha de compreensão pela dificuldade de quantificação do problema, não seja de forma nenhuma, aumentado. Os cinco anos previstos são tempo mais que suficiente para o Estado se preparar para assumir as responsabilidades de apoio social que só a ele pode competir, para não se cair num esquema assistencialista em que o senhorio "rico" concede uma esmola ao inquilino "pobre"... Quer queira quer não!
Considerando que os prazos previstos e legislados vão ser naturalmente cumpridos, o que se torna importante agora, é que os senhorios estudem, desde já, como entendem que este apoio deve vir a ser concretizado, de forma a terem ideias bem definidas para quando forem chamados a negociar esta matéria.
Suponho que, basicamente, as dúvidas que se colocam são as seguintes:
1 - A quem deve ser concedido o subsídio estatal? Ao inquilino ou ao senhorio?
2 - Qual deverá ser o valor do subsídio a pagar pelo Estado?
Será sempre a diferença entre, por um lado, o valor da renda que o inquilino está a pagar, calculado na base do RABC, e por outro, com que montante para a renda? O calculado com base no V.P.T. não faz sentido, porque nessa altura se dará a transição para o mercado livre das rendas estabelecidas com essa base; assim sendo, como se poderá determinar, de forma simples, justa e eficaz, o valor daquele subsidio?
Entendo que a discussão do desaparecimento do congelamento das rendas, que tanto ocupou os senhorios no passado, encontra-se ultrapassada e que passam a ser problemas como os referidos que devem começar a prender a nossa atenção e a ser discutidos, preparando o futuro que chega a galope.
FIM
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