Reflexões sobre a nova Lei das Rendas
João Anastácio 18-Abr-2013
A política do congelamento das rendas por via administrativa tem, nas diversas variantes que foi conhecendo ao longo do tempo, um pouco mais de cem anos.
Apesar de ser pacífico o diagnóstico dos gravíssimos inconvenientes, de todo o género, provocados por esta política e apesar de algumas tímidas tentativas feitas ao longo do tempo, nunca o assunto se resolveu; criou-se, assim, a pouco e pouco, uma situação extremamente complexa. A resolução do assunto, que consistiria apenas na passagem do arrendamento a uma lógica de funcionamento de mercado livre, transformou-se num autêntico nó górdio, problema que ninguém foi ainda capaz de desatar.
Em boa verdade, em 1990, saiu legislação que normalizou as relações Senhorio/Inquilino em relação aos novos contratos de arrendamento para habitação e, em 1995, para os comerciais.
Apesar das campanhas habituais sobre os anunciados cataclismos que a nova Lei provocaria, provavelmente inevitáveis em qualquer alteração do "status quo", já passaram 23 anos e tudo está a funcionar sem conflitos.
Restava resolver a situação dos ainda centenas de milhar de contratos em vigor celebrados em datas anteriores às referidas, sem prazo certo e cuja renda só é atualizada, anualmente, através de uma percentagem (inflação) que, aplicada a rendas muito baixas, perde significado e cuja permanência, constitui um atraso para o desenvolvimento da economia nacional.
Em 2006, o Governo de então elaborou uma Lei procurando fazer uma atualização mais rápida do valor das rendas congeladas (em 10 anos...), mas enredou essa tímida possibilidade numa tal teia de condicionantes (atualização do IMI, gradação do valor do aumento das rendas em função do estado de conservação do imóvel, com a inerente burocracia e custos, etc.) que poucos senhorios aproveitaram a possibilidade então aberta. Não era esse o caminho.
O Governo atual, também pressionado pela troika, e que não só precisava do aumento da receita do IMI como ainda de colher as vantagens económicas, a prazo, do funcionamento regular, sem restrições, do mercado de arrendamento (as tais medidas estruturais), lançou-se numa nova tentativa de cortar o referido "nó górdio". Em 14 de Agosto de 2012, foi publicada a Lei 31/2012 que entrou em vigor em 12 de Novembro desse ano.
Passados pouco mais de quatro meses de aplicação da Lei, parece interessante fazer uma pequena reflexão sobre o impacto que a mesma tem estado a ter no mercado de arrendamento, nos inquilinos e nos senhorios.
A primeira constatação é de que a Lei, embora normalmente publicitada, não chegou ao conhecimento da maioria dos inquilinos que iriam ser por ela afetados. Trata-se, em geral, de uma população envelhecida, pouco alfabetizada e habituada a uma tranquilidade total no que se referia á renda da casa. O aparecimento das primeiras cartas dos senhorios propondo um aumento de renda significativo lançou o pânico nessa população, pânico esse aproveitado por forças políticas para os habituais shows de propaganda anti- governo.
Dois pontos fulcrais
Não houve o cuidado de salientar dois pontos fulcrais da Lei:
O primeiro de que o valor inicial é uma proposta do senhorio e não necessariamente o valor da nova renda, como acontecia antes com as comunicações dos aumentos anuais por inflação.
O segundo, que o aumento proposto tinha, como base, o Valor Patrimonial Tributário, mas que o valor deste aumento seria imediatamente substituído, para efeito da determinação da nova renda, por uma percentagem de 10, 17 ou 25% do rendimento do inquilino (em função do respetivo escalão) caso este invocasse e provasse, estar numa situação de dificuldade económica. Assim o valor da renda proposto, na base do que o Estado definiu com dever ser o "justo" em função do Valor Patrimonial Tributário da casa (sempre muito baixo em relação ao valor de mercado) é substituído, quási automaticamente, por um outro valor que depende do rendimento do inquilino (R.A.B.C. - Rendimento Anual Bruto Corrigido). O Estado definiu ainda, como limite abaixo do qual se considera existirem dificuldades económicas, um montante de rendimento mensal de € 2.829.
A grande maioria das atualizações de renda irão ser feitas, portanto, com base no rendimento dos inquilinos e não no do valor do fogo arrendado, até porque 90% das pensões nacionais são inferiores a € 1350 e a maioria dos inquilinos, com contratos anteriores a 1990, são hoje reformados.
A diferença entre os dois valores referidos constitui, desde logo, a verba com que os senhorios contribuem efetivamente para o bem-estar dos seus inquilinos que habitam casas com dimensões, localização etc. acima das suas possibilidades, tal como resulta do estabelecido pela Lei.
Esta realidade é extremamente injusta para os senhorios mas, convenhamos, sair do imbróglio que foi criado pelo congelamento das rendas nunca seria fácil. Como a Lei prevê, para dentro de cinco anos, que o diferencial referido, venha a ser coberto por um subsídio de renda a pagar pelo Estado, foi criada a esperança de que o calvário de cem anos percorrido pelos senhorios esteja a chegar ao fim, assim o Estado cumpra com aquilo a que se comprometeu.
Ao não terem sido suficientemente publicitados os dois pontos acima referidos e considerando ainda que o prazo para a resposta do inquilino é apenas de 30 dias, percebe-se o alarme a que assistimos e o susto que, desnecessariamente, foi pregado aos inquilinos, uma vez que a proposta inicial do senhorio tinha sempre de se basear no Valor Patrimonial Tributário por, naturalmente, ser desconhecido o RABC do inquilino.
A pouco e pouco a mensagem foi passando e hoje há uma compreensão maior por parte dos inquilinos para com a nova Lei, sendo certo que o facto de as Finanças não disponibilizarem as certidões exigidas para demonstrar qual o Rendimento Anual Bruto Corrigido dos inquilinos (só estarão disponíveis em Julho), levou a adiar a concretização desses aumentos e portanto a uma acalmia na sua contestação imediata. Parece-nos todavia que não haveria inconveniente se o prazo de um mês previsto para a resposta inicial do inquilino, fosse alargado para dois meses.
A Lei entrou em vigor, teoricamente, em Novembro de 2012, mas na realidade tem vindo a concretizar-se muito lentamente.
Exemplifiquemos alguns dos atrasos constatados:
1 — A comunicação da atualização da renda tem obrigatoriamente de capear uma Caderneta Predial com a indicação do VPT do prédio, devidamente atualizada. As avaliações dos prédios urbanos, que se previa estivessem terminadas em Dezembro de 2012, só acabaram no final de Março e algumas ainda não passaram o prazo possível de reclamação. Resultado: os senhorios destes últimos prédios a serem avaliados, só agora poderão iniciar o processo de atualização das rendas.
2 — Na resposta á proposta do senhorio, o inquilino pode invocar, em contra proposta, ter um R.A.B.C. que lhe permite, legalmente, atualizar a renda para um valor em função desse Rendimento Bruto; para tal tem porém de fazer prova do Rendimento que invoca, através de uma Certidão passada pela sua Repartição de Finanças. Sucede que as Finanças só podem certificar o rendimento dos contribuintes de 2012, a partir de Junho/Julho do ano corrente. Até lá não poderá haver atualização de renda, a não ser que o inquilino, para evitar acertos retroativos, concorde em começar imediatamente a pagar o valor da nova renda com base no rendimento que ele sabe que auferiu. Mas é um esquema que tem todas as condições para não funcionar.
Em resumo
I O problema do descongelamento das rendas, depois de passados 100 anos desde o seu início, era muito complexo, dadas as situações de índole social que se foram criando e enquistando, ao longo do tempo.
II Existiram no passado várias tentativas de resolver o problema, todas sem sucesso.
III Por necessidade nacional e imposição do Memorando de Entendimento, o Estado foi obrigado a fazer nova tentativa para regularizar o mercado de arrendamento.
IV Parece-nos, tudo considerado, ter-se conseguido encontrar uma solução que permite alguma esperança, embora apoiada ainda no sacrifício dos senhorios, fazendo com que, durante mais cinco anos, continuem a suportar um ónus que, muito claramente, compete ao Estado, com todas as ineficiências que esta injustiça cria e que, ao fim e ao cabo, se refletem no desenvolvimento da economia nacional, por uma errada alocação de recursos.
V Em todo o processo constata-se o atraso habitual inerente á implantação de toda uma nova regulamentação. É portanto ainda cedo para tirar conclusões que não sejam primeiras impressões.
VI Verifica-se todavia já, uma pequena reanimação do mercado de arrendamento a partir do cancelamento de contratos por iniciativa do inquilino, ou pela atualização de renda nos casos mais gritantes (espaçosas agencias bancárias ou instalações de grandes empresas, com rendas irrisórias, casas desabitadas pelos inquilinos mas que se mantinham como armazém de móveis, por serem tão baratas etc. etc.).
VII No caso dos pequenos espaços comerciais, tem-se assistido ultimamente ao encerramento de bastantes, mas tal não é devido á alteração das rendas, que ainda não se concretizou, mas á crise económica que atravessamos. Será difícil distinguir, no futuro, qual a causa destes encerramentos mas, certamente, os senhorios, ao fazerem a sua proposta de aumento de renda, terão em consideração o contexto em que se situam pois, caso contrário, arriscam-se a trocar um inquilino que paga uma renda baixa, por um espaço vazio que não conseguem arrendar.
VIII Um dos aspetos fulcrais da Lei reside na prevista agilização dos despejos; não há todavia ainda experiência suficiente sobre a forma como está a funcionar o Balcão do Arrendamento.
Conclusão
A Lei 31/2012 sobre o arrendamento urbano que entrou em vigor em Novembro p.p., traz uma esperança por permitir começar a vislumbrar o fim dos enormes prejuízos que tem constituído para a economia nacional o congelamento das rendas, em contrapartida duma vantagem ilusória para os inquilinos.
Apesar de muitos dos custos da transição para o regímen de economia de mercado que se pretende atingir nesta área, serem, mais uma vez, suportados pelos senhorios, compreende-se que esta passagem tenha de ser feita com bom senso para minimizar os custos sociais que inevitavelmente acarreta, dada a situação de bloqueio que foi crescendo ao longo do tempo.
Os muitos atrasos na concretização da aplicação prática da Lei que surgiram, como atrás exposto, não permitem ainda, ter uma visão clara das consequências da sua aplicação, mas as primeiras impressões parecem-me positivas.
FIM
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