Chipre e o Futuro dos Depósitos Bancários

 

Artur Soares Alves

21-Mar-2013

 

 

Muitos são os processos a que recorrem os governos quando pretendem emendar situações que as mais das vezes se devem ao fraco entendimento da classe política no seu conjunto. Ou se devem também às más práticas desses mesmos governos. No último artigo mencionou-se o imposto de selo especial sobre as habitações avaliadas em 1 milhão de euros, ou acima. Neste momento é inevitável discorrer sobre a situação em Chipre onde, à ordem da União Europeia, os depositantes se preparam para perder uma percentagem alta dos seus depósitos; ver por exemplo aqui. Esta foi a condição imposta a Chipre para poder aceder a um empréstimo que resgate os seus bancos.

 

O anúncio deste cardanho[i] provocou um calafrio por toda a Europa, sobretudo nos países em atuais dificuldades económicas, onde os depositantes se interrogam se devem confiar nas promessas dos políticos europeus ou retirar desde já os seus depósitos bancários, livrando-se de perdas. Se os depositantes retirarem o seu dinheiro dos bancos estes ficam sem condições de emprestar e toda a economia sofre por falta de crédito. Porém, se o plano para Chipre se repetir em mais algum país europeu será certa uma corrida aos depósitos e uma crise garantida. Este parece ser o único motivo que impede os governos de fazerem mão baixa sobre os depósitos.

 

Se assim for então a situação moral da Europa está pelas ruas da amargura. Parece que ninguém ainda chamou a atenção para o facto de o cardanhosobre os depósitos atentar contra o direito de propriedade. Este é garantido pelo Tratado de Lisboa[ii]. Poderia não o ser, tal como não o era na URSS. Contudo, os países europeus inscreveram-no neste documento fundamental e agora anulam-no com esta ligeireza.

 

Direito de Propriedade em causa

 

Os proprietários urbanos conhecem bem as violências contra os seus direitos, praticadas de forma matreira e sempre escondidas atrás de falsos princípios morais. Ora, o direito de propriedade não se divide e perder o rendimento de um prédio não é diferente de perder uma parte substancial (e ainda que não fosse substancial) de um depósito bancário. Em ambos os casos se trata de poupanças que pertencem exclusivamente a quem as constituiu, só podendo delas ser privados mediante justa indemnização pela respetiva perda, em tempo útil.

 

Este é o princípio fundamental que está em causa e seria posto em evidência nos media, não fosse a perturbação moral que se apossou dos nossos dias. A isso acrescem vários absurdos que, sendo importantes, não deixam de ser supletivos.

 

Chame-se o que quiser a este cardanho, chame-se haircut ou outra coisa qualquer, é de um imposto que se trata. Este imposto cai direto em cima dos aforradores e poupa aqueles que consomem todo o seu rendimento. Por um lado reconhece-se a importância do aforro para que a economia possa dispor do crédito necessário ao seu funcionamento, por outro punem-se aqueles cuja moderação no consumo permite a existência deste aforro. Este é um imposto seletivo, que não é baseado nos rendimentos das famílias mas tão-somente nos aforros destas.

 

Sempre que se quer prejudicar um grupo começa-se por um processo de desumanização. É o que já está a ocorrer com os depositantes dos bancos cipriotas. Diz-se que Chipre era uma plataforma de lavagem de dinheiro e daqui sugere-se que todo o depositante em Chipre é um gangster ou um terrorista. Porém, isto seria matéria criminal para ser investigada com as devidas consequências para os indivíduos com culpas no cartório, em vez de aplicar um castigo coletivo e indiferenciado a toda a gente.

 

Podemos medir a confusão que este assunto está a provocar pelas mudanças que já houve. Primeiro fixou-se em 6,75% e em 9,9% o imposto a pagar; ver aqui. A seguir anunciou-se que a chanceler alemã quereria uma taxa de 40%. Mais tarde falou-se em aplicar este imposto apenas aos depósitos superiores a 100.000 euros a uma taxa de 20%. Para além da divergência de taxas, nada é anunciado sobre o modo como se tenciona calcular o imposto, sabendo-se que é muito diferente aplicar 20% a todos os depósitos superiores a 100 mil, ou aplicar essa taxa ao valor que exceda 100.000 euros.

 

Pela Europa…

 

Após o calafrio gerado pelo imposto cipriota várias foram as declarações que prometeram que esta situação seria excecional. Não se vê bem por quê. Se é uma boa medida, por que não repeti-la, se é má, porquê usá-la uma só vez que seja?

 

Também por outros lugares se pensou em cousas semelhantes.

 

Miguel Cadilhe propôs um imposto de 4% sobre riqueza líquida para pagar dívida pública.

 

O governo da Catalunha pensou em criar um imposto sobre os depósitos bancários que renderia 500 milhões de euros por ano.

 

A questão é saber por quanto tempo será possível parar esta tendência que parece crescer. Um livro[iii] espanhol de 2012, cujo autor não será de forma alguma um estatista, propõe que parte dos depósitos seja transformada em ações do próprio banco para recapitalizar este. Isto é, os depositantes (que nunca o tinham sonhado) vão ser donos do banco... Chama-se a isto um bail-in e é semelhante à ideia que se pretende efetivar em Chipre.

 

Seja como for, os aforradores são obrigados a pagar pela má gestão dos bancos que concederem empréstimos, ao Estado e a particulares, contra o que aconselhava o senso comum. Porém, se é assim, se a solvência dos bancos é indispensável à saúde da economia e se é esta a justificação para uma tal violência contra o direito de propriedade, então haverá que reconhecer aos lesados neste processo a condição de salvadores da economia. Neste caso, o País deverá mostrar-lhes a sua gratidão e dispor as coisas para que num futuro mais risonho eles sejam compensados deste sacrifício.

 

Entretanto, a última notícia diz que os depósitos de 100 mil serão taxados a 30%...

 

A função dos bancos

 

A única maneira de lidar com esta confusão sem perder o tino é recordar a função e utilidade do sistema bancário. Em primeiro lugar os bancos guardam o dinheiro das pessoas, evitando a estas a preocupação de serem assaltadas e roubadas dos seus haveres monetários. Com isto vem uma série de serviços que facilitam os pagamentos, como os cheques e as transferências.

 

Os bancos também gerem o crédito, em benefício próprio, dos seus clientes e da economia em geral. Juntando as pequenas quantias depositadas por centenas de milhares de clientes, proporcionam o crédito às empresas sem o qual estas não poderiam fazer investimentos. A troco disso pagam ao depositante um juro modesto mas isento de risco. Os bancos são financiados por milhões de pessoas que não têm os conhecimentos técnicos, nem económicos, para fazer investimentos diretos nas empresas. São intermediários cruciais que fornecem esses conhecimentos sem os quais os investimentos são arriscados.

 

Por isso a confiança é fundamental nesta atividade. Quando entrega o seu dinheiro o depositante confia em que este lhe será integralmente devolvido ao fim do prazo convencionado, consoante o tipo de depósito. O sistema só pode funcionar se o cliente acredita que entregar o dinheiro ao banco é o mesmo (ou ainda melhor) que deixá-lo em casa dentro do cofre ou no proverbial colchão.

 

É um facto que esta confiança tem sido erodida. Hoje as Finanças, com uma simples ordem administrativa podem congelar as contas bancárias de um quidam com o simples objetivo de o forçar a pagar uma dívida fiscal, seja esta real ou resultando de um lapso da administração. Esta não é a única forma de erosão desta confiança e, de erosão em erosão, chegou-se ao que se chegou em Chipre e hoje é difícil acreditar que o mesmo não vai acontecer noutros países europeus.

 

A menos que o calafrio que já corre mundo faça arrepiar caminho aos políticos e cidadãos europeus; e sobretudo repensar a importância menor que tem sido dada ao direito de propriedade.  

 

 

FIM



[i] Cardanho: Roubo, furto. Casa em que se fazou se vai fazer um roubo. Dicionário de Machado.

[ii] CARTA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS DA UNIÃO EUROPEIA

Artigo 17.º

Direito de propriedade

1. Todas as pessoas têm o direito de fruir da propriedade dos seus bens legalmente adquiridos, de os utilizar, de dispor deles e de os transmitir em vida ou por morte. Ninguém pode ser privado da sua propriedade, excepto por razões de utilidade pública, nos casos e condições previstos por lei e mediante justa indemnização pela respectiva perda, em tempo útil. A utilização dos bens pode ser regulamentada por lei na medida do necessário ao interesse geral.

2. É protegida a propriedade intelectual.

[Aqui, pág. 393]

 

[iii] Juan Ramón Rallo — Una alternativa liberal para salir de la crisis, Ediciones Deusto, pág. 150.

 

 

  
 
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