Governados pelo Computador

 

 

Artur Soares Alves

29-out-2015

 

 

A obrigação de emissão de recibos eletrónicos foi a última novidade num processo de relações entre o Estado e o cidadão feitas através do computador e da Internet. Com o que vem de trás e com o ordenamento trazido pela reforma do IRS (Lei n.º 82-E/2014 de 31 de dezembro) e pelas modificações ao Imposto do Seloincluídas na Lei do Orçamento para 2015[i], podemos enunciar os deveres do senhorio, a cumprir através da Internet:

 

·        Registar o contrato de arrendamento e pagar o imposto do selo.

·         Emitir recibos eletrónicos pelas rendas recebidas, mas também relativo a qualquer despesa que fique por conta do inquilino (por exemplo quando o contrato da água fica em nome do senhorio).

·         Apresentar a declaração de rendimentos do ano para efeito de IRS.

·         Comunicar o cancelamento o contrato quando o inquilino deixar o prédio.

 

Mas isto é apenas o que o senhorio pratica diretamente porque sempre que paga uma fatura ao empreiteiro esse ato é comunicado eletronicamente à Administração fiscal. Relativamente ao senhorio o computador que governa os impostos em Portugal conhece, dia a dia, exatamente quanto foi recebido como rendas e quanto se gastou em obras ou outras despesas permitidas. Isto é, dia a dia, as Finanças podem estimar quanto de imposto vai cada contribuinte senhorio pagar quando for chamado a contribuir.

 

Se o contribuinte senhorio exigir a célebre fatura com número de contribuinte, num espaço da memória do computador lá fica registado que gastou Xis naquele almoço no restaurante “Boa Nova”, com data e hora de pagamento. Se a isso juntarmos o registo dos movimentos bancários vemos que o conhecimento pormenorizado da vida do cidadão está ao alcance de qualquer funcionário de uma entidade que tenha poder para aceder a essa informação. A vida privada acabou de tal forma que os arquivistas da velha e temida PIDE eram meninos de coro em face da eficiência da devassa da vida privada nos tempos que correm.

 

Dito isto, o que nos interessa aqui é a relação entre o contribuinte e a Administração fiscal em que esta afinal está reduzida praticamente a um computador. Isso tem consequências e origina erros absurdos. A questão é: como chegámos aqui?

 

No topo do sistema fiscal estão o Governo e o Parlamento que fazem as leis fiscais estabelecendo em geral quanto cada cidadão deve pagar de imposto por ano. No nível seguinte da hierarquia estão os altos funcionários das Finanças que determinam os pormenores que regem a cobrança da receita fiscal, em particular resolvendo as dúvidas de interpretação da lei. No nível da execução estão os funcionários que recebem as declarações de rendimentos e das propriedades e calculam o valor do imposto. Finalmente, também ao nível de execução estão os funcionários encarregados de fiscalizar as declarações dos contribuintes. Podemos dizer que isto eram as velhas Finanças, do tempo em que o trabalho era feito à mão ou com ajuda da máquina de calcular.

 

Pelos fins da década de 1940 apareceu o computador, também chamado cérebro eletrónico. O computador realiza as quatro operações a velocidade infinitamente superior à do funcionário que calculava penosamente o valor do imposto. E isto porque o computador pode ser programado, isto é, é capaz de executar uma série de operações pela ordem indicada. A partir dos dados fornecidos de uma vez só pelo operador, consegue-se calcular o valor do imposto numa fração de segundo.

 

Porém, se fosse só por isso o computador não seria mais do que uma super-calculadora. Mas o computador consegue fazer uma coisa que se julgava ser exclusiva dos seres vivos superiores: o computador consegue tomar decisões. Dados dois números, consegue identificar o maior deles; dadas duas palavras consegue pô-las por ordem alfabética; dada uma grande lista desordenada de nomes pode encontrar o nome que nos interessa numa fração de segundo. O computador pode passar rapidamente por todos os registos dos contribuintes e detetar quem não pagou.

 

Isto é, o computador consegue substituir o funcionário executor para a maior parte das operações que lhe competem. A partir do momento em que o contribuinte faz a sua declaração on-line ele está a fornecer os dados na forma que o computador entende e por isso o valor do imposto é calculado instantaneamente. E quando o contribuinte paga o imposto no Multibanco o computador do banco transfere o pagamento para o Tesouro e o computador das Finanças regista o pagamento. Se o contribuinte não pagar no prazo o computador verifica a falta de pagamento e por isso emite e imprime um aviso dando um novo prazo de pagamento e indicando a respetiva coima. Nada disto necessita de intervenção humana.

 

Do mesmo modo, quando há falhas em anos seguidos no pagamento do IMI o computador determina a penhora da casa e organiza o processo de venda em leilão. E se um contribuinte estiver dado como devedor o computador emite ordem ao banco para congelar as contas do devedor ou suposto devedor.

 

Mesmo as inspeções podem ser realizadas automaticamente, afinal as Finanças conhecem as despesas que o senhorio faz com obras e pode compará-las com a declaração. Há muitas outras operações automáticas mas o leitor já captou o princípio. E ao diminuir-se a intervenção humana as Finanças podem reduzir o seu quadro de funcionários e até fechar algumas repartições. Mas esta automatização da receita fiscal não deixa de ter os seus inconvenientes.

 

A rapidez do computador permite efetuar operações que antes seriam impossíveis. Porém, o computador só executa as ordens que lhe dão e só compreende ordens muito simples. Pela sua natureza é incapaz de identificar uma ordem absurda ou que vá até contra os mais elementares princípios de humanidade. Perante a falta de pagamento do IMI um funcionário pode interrogar-se sobre possíveis razões antes de expulsar uma pessoa idosa da própria casa — afinal que é feito do direito constitucional à habitação? — mas o computador não tem desconfianças, intuições ou sentimentos.

 

A gestão eletrónica dos impostos gera uma confiança cega na informação contida no computador. Aos funcionários exige-se cada vez menos competências, quase estão reduzidos a ler o que está escrito no ecrã que têm na mesa. Se o computador acusa o contribuinte de qualquer falha, a correção pode ser um bico-de-obra porque quem é o funcionário para saber mais do que o computador?

 

Porém, o computador só trabalha com os dados que lhe fornecem e os dados podem estar errados. Por outro lado as operações que o computador deve executar (e que constituem o programa) também têm origem humana e podem conter lapsos que as tornam desconforme com a letra de lei. O próprio computador é uma máquina e, como tal, sujeito a avarias.

 

Não se poderia pensar que o sistema fiscal regressasse aos processos antigos com registos em papel. Mas dada a fragilidade inerente ao sistema e que só vai agravar-se com o tempo, todos os atos do sistema fiscal contra o contribuinte — como penhoras, exigência de impostos indevidos, erros em registos, interpretação abusivas da lei como o imposto de selo em prédios acima de um milhão — todas essas situações deviam poder passar diante de um magistrado independente e serem previstas indemnizações quando a Administração fiscal comete erros que trazem prejuízo ao contribuinte.

 

Há finalmente uma outra questão e que tem a ver com a eficiência da máquina fiscal. É certo que a opinião pública se regozija quando os outros são alvo da ação fiscal. Todavia, além de ser pecado fazer pouco da desgraça alheia, pode ser que esta eficiência na colheita fiscal venha pela calada da noite pregar alguma partida. Expliquemos. Nos tempos da gestão em papel a fuga ao imposto é mais fácil do que hoje e, portanto, nos cálculos do orçamento fixam-se taxas elevadas que já têm em conta a fuga aos impostos. E assim se criava um equilíbrio e íamos vivendo… Porém, a eficiência do sistema fiscal diminui a fuga ao imposto e automaticamente as taxas passam a ser excessivas. Excesso de imposto sufoca a economia e uma economia em estado terminal é mau para toda a gente.

 

quidam que se alegra com facto de o café do bairro estar agora sujeito ao máximo rigor fiscal em nada beneficia com a falência do negócio, agora que já não tem onde tomar a bica.

 

 

FIM

 



[i] Alterações ao imposto de selo;

 

   

 

 

 

 

 

  
 
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