As Leis que nos Comandam  

 

 

Artur Soares Alves

5-mai-2016

 

 

Para o proprietário enquanto tal não há preferências políticas porque ele não espera que o Estado lhe dê alguma coisa. Tal como Alexandre Herculano, ele mesmo proprietário e lavrador em Vale de Lobos, ao proprietário é indiferente saber se o soberano se senta num trono ou numa tripeça, desde que as leis se afirampelos princípios do bom e do justo (Carta de Herculano a Oliveira Martins ).

 

As leis que se aferem pelos princípios do bom e do justo são aquelas que protegem a vida e a liberdade; e a propriedade — sem a qual não há garantia de vida nem de liberdade. Estes princípios do bom e do justo são exatamente aqueles que asseguram o progresso das sociedades, tanto o progresso material, como o progresso moral, e que nos trouxeram desde as cavernas até ao mundo de hoje. Porém, nem todos os homens aceitam esses pressupostos do progresso. Logo que um homem descobriu a agricultura, houve um marau que descobriu que lhe era mais proveitoso roubar o produto da colheita. As primeiras formas de estado protegem a colheita da ação do predador e deixam o agricultor dedicar-se ao aperfeiçoamento da sua atividade. Com mais cereal produzido, mais gente pode alimentar-se a melhor “preço”.

 

É evidente que os proprietários votam e têm as suas preferências políticas, todavia não votam maciçamente num só partido, nem votam com o objetivo de proteger os seus interesses, ao contrário de conhecidos setores profissionais da vida portuguesa cujo rendimento depende das sinecuras que o Estado lhes faculta com o dinheiro dos outros. Os proprietários, ainda que numerosos, não têm fidelidades partidárias e, num sistema político que ande ao sabor das pressões dos grupos organizados, os proprietários são forçosamente vítimas indefesas.

 

E onde há vítimas potenciais logo surgem predadores. O faraó do Egito protege o agricultor dos ataques dos ladrões, contra o pagamento de um imposto para manter uma força armada mas também para pagar o luxo da corte e construir as pirâmides que asseguram a eternidade para além da morte. Em todo o caso era preferível dar 20% da colheita ao faraó do que “dar” 100% ao ladrão. Era um equilíbrio que não é diferente do que ocorre nos dias de hoje. É verdade que o ladrão também tinha um fator contra si — ele só ia roubar a primeira vez porque nenhum agricultor iria semear e cultivar para depois ficar com nada. Era já a curva de Laffer a funcionar e o tipo de problema que se discute nos dias de hoje.

 

Dito isto, é certo que os proprietários não têm razões para preferências políticas, sobretudo ao nível dos grandes partidos. Posta a retórica de lado, o facto é que foi Mário Soares (lei 46/85) quem acabou com o tabu do congelamento das rendas; e foi Cavaco Silva quem, num contexto de desafogo económico, manteve teimosamente as rendas antigas congeladas; e manteve contratos comerciais vinculísticos, mesmo para novos contratos, até 1995. É Cavaco Silva quem defende o imposto sucessório com efeitos claramente ruinosos para os proprietários. Foi o Governo anterior que corrigiu parcialmente as rendas congeladas para valores que, muitas vezes, já não são ridículos (mas foi por imposição da Troika). Em contrapartida, durante o mandato desse mesmo governo não houve 5 minutos de vida parlamentar para esclarecer a Lei 55-A/2012, de 29-Out, e acabar com esse abuso inominável que leva a aplicar o imposto do selo a prédios em propriedade total, mas divididos em habitações independentes, apenas porque que valem mais de um milhão de euros na sua totalidade.

 

Preferência temporal

 

Por detrás de tudo isto existe a questão da chamada preferência temporal. Toda a gente conhece alguém com uma alta preferência temporal, isto é, uma pessoa que procura disfrutar das coisas boas da vida logo na hora, comprando a crédito mesmo as coisas mais fúteis porque não consegue resistir à vontade de consumir. Para essas pessoas o futuro está coberto de nevoeiro, quando se lá chegar logo se vê; Deus há de dar o frio conforme a roupa. E, para a maioria de ateus ou “agnósticos” o Estado haverá de fazer o papel de Deus, porque só se vive uma vezo tempo não anda para trástodos temos direito a gozar a vida, e até os Latinos tinham uma expressão para isso, carpe diem.

 

Depois há aqueles que têm uma baixa preferência temporal, aqueles que estão sempre a adiar o seu consumo, que poupam porque temem o futuro. Supostamente até há alguns que levam o exagero ao ponto de viver pobremente apenas para acumular dinheiro. Não se trata aqui de fazer um juízo moral, uma escolha entre o consumidor compulsivo e o aforrador igualmente compulsivo mas há um facto inegável — o consumidor conta com os bens do aforrador para o safar através de subsídios do Estado, quando toca a hora do agente de execução.

 

O nível de preferência temporal é um atributo individual subjetivo, cada qual tem a sua. A preferência individual vai evoluindo ao longo da vida, a criança e os adolescentes têm níveis muito elevados, querem tudo e depressa. A educação e o exemplo dos adultos vão atenuando essa pressa de consumir, mas há aqueles que nunca ultrapassam a fase da adolescência. Ainda assim, a lei pode criar incentivos que reforçam a índole do quidam, quer num sentido, quer no outro. Nas últimas décadas, na Europa e nos Estados Unidos, e porventura noutras partes do mundo, os governos conduziram políticas de estímulo ao consumo aproveitando os juros baixos nos mercados mundiais. Não são de admirar as notícias em que se toma conhecimento de famílias pesadamente endividadas por casas que compraram sem terem perspetivas realistas de poder pagá-las. Ainda assim as casas são bens duradouros, mas quando a essas dívidas se somam despesas de cartões de crédito e de chamadas por telemóvel, é legítimo pensar que o cerne da questão não está somente na irresponsabilidade pessoal, mas também que alguém estimulou essa irresponsabilidade.

 

Quem sabe até que ponto os próprios credores têm por certo que essas dívidas vão ser pagas com dinheiro dos contribuintes, mas só os tais que poupam porque evidentemente só perde quem tem.

 

Atrás da irresponsabilidade financeira vem a irresponsabilidade moral e a degradação pessoal. Daí se parte para comportamentos indecorosos ou mesmo para crimes, coisas que são a ponta do iceberg de uma cultura porventura já dominante. Contudo o que importa é que esta massa de cidadãos vota e, de preferência, vota a favor de si-mesma. E os governos têm que ter em conta este peso eleitoral.

 

Idiossincrasias

 

A formação do Governo atual tem a singularidade de romper com um consenso em vigor na vida política portuguesa, desde 1975, segundo o qual os votos nos comunistas não contavam. Em si-mesmo isso tem pouca importância e, na verdade, muitos dos homens de Estado que a História regista foram precisamente atores de roturas com consensos em vigor.

 

O problema vem doutro lado. Ao romper este consenso o Governo tem que congregar apoios em setores que estavam mais ou menos adormecidos. Ora estes setores têm guardado ciosamente as suas idiossincrasias à espera de que o poder do Estado as possa satisfazer. Gostam de uma loja que não tem clientes? Pois a loja recebe o nobre adjetivo de histórica e terá que ficar a aberta com uma renda baixinha. Para isso se projeta urgentemente uma lei que permite aos municípios classificar lojas como históricas segundo alguns critérios parcamente definidos. Projeto de Lei do PS[1]:

 

2 - Sem prejuízo de outros critérios identificadores de elementos relevantes para a memória local a definir no regulamento referido no número anterior, o interesse histórico-cultural relevante para efeitos de classificação de um estabelecimento ou entidade resulta da identificação na sua atividade, espólio, acervo, espaço comercial, inserção e papel social:

a) Da existência de valores de memória, antiguidade, autenticidade, originalidade, raridade, singularidade ou exemplaridade dos elementos a classificar;

b) Da presença de traços que constituam elementos estruturantes da identidade e da memória coletiva local, regional ou nacional.

 

Em resumo, o comerciante que quer salvar o seu negócio ineficiente o melhor que tem a fazer é procurar padrinhos em setores políticos influentes; em vez de queimar as pestanas a procurar uma solução economicamente viável. Quem não tem padrinhos morre mouro, mas cuidado com o padrinho escolhido porque isto da política é como o vaivém das marés.

 

É claro que quando o vento está de feição é de enfunar as velas ainda que não se saiba aonde se vai parar. A fazer fé numa notícia do Observador (27-abr-2016):

 

A Comissão de Economia, Turismo, Inovação e Internacionalização da Assembleia Municipal de Lisboa decidiu recomendar à Câmara que proteja os estabelecimentos históricos da especulação imobiliária, tendo em conta o iminente fecho de discotecas míticas no Cais do Sodré [itálico nosso].

 

Pois não é nestes lugares míticos que se forma a tal geração mais instruída de todos os tempos, mas que tem dificuldade em se empregar no país?

 

O que nos traz a um personagem igualmente mítico de Lisboa, o benemérito Diogo Alves. Estará ainda a funcionar a taberna onde ele ia beber uma terceira para ganhar forças antes de subir ao Aqueduto das Águas Livres? Não merece um tal estabelecimento toda a proteção que o Estado lhe possa dar, à conta do senhorio? Eis as ingentes questões que a política atual nos impõe.

 

Geração instruída

 

O problema das gerações muito instruídas já foi tratado por autores do fim do século XIX, nomeadamente o psicólogo francês Gustave Le Bon. Portanto, não podem os políticos nacionais dizer que não estavam avisados.

 

Tudo começa, como tudo começa, com Adão e Eva. Adão comeu a maçã proibida e Deus disse-lhe que ele iria ganhar o pão com o suor do seu rosto, isto é, com trabalho braçal e não sentado diante do computador. Portanto, o trabalho manual é um castigo, uma indignidade por desobedecer a Deus. Dos Gregos antigos vem igualmente essa desconsideração pelo trabalho manual. E ao longo dos séculos sempre o trabalho manual foi visto como inferior ao trabalho mental, o cavador de enxada está no extremo inferior da hierarquia social, na outra ponta estão o teólogo e o homem de Estado.

 

Ora, ninguém gosta de estar na parte de baixo da hierarquia social e, por razões numerosas e que não têm espaço aqui, os governos do Ocidente promoveram a intelectualização maciça da juventude. Perante o ceticismo de alguns que viam com desconforto o fim do ensino técnico profissional, argumentou-se que o importante era preparar as novas gerações para a sociedade de informação. Afinal, se íamos todos ser financeiros como os Londrinos da City, para que servia trabalhar ao torno mecânico? Os empregos no campo da informação e no conforto dos escritórios iriam chover como maná.

 

Todavia as coisas não correram assim. A juventude diplomada afinal não encontrou os empregos que esperava. A única exceção são os médicos porque a classe, pela via do lobby, reduziu as admissões às faculdades de Medicina e provocou a carência artificial de facultativos.  

 

Os outros, findo o curso alguns tiveram oportunidades de emprego no País, o que não encontraram emprego reagiram de modos diferentes. Uma parte fez-se à estrada e emigrou. Outra parte ficou e aceitou o que apareceu adaptando as suas perspetivas às novas realidades. Restam os irredutíveis, aqueles que se reconhecem na canção dos Deolinda “

   

 

 

 

 

 

  
 
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